Entrevista com Othon
• O filme, O Sol Sobre a Lama, de Alex Viany, marcou sua estreia num set de
cinema, não é mesmo?
Exato. O Sol Sobre a Lama foi o primeiro filme longa-metragem que eu fiz na
vida. Até então eu tinha feito um documentário sobre tuberculose. Era um
estudo do Ministério da Saúde. Pediram a um jornalista para fazer um filme
sobre a tuberculose, porque a doença estava se agravando muito no Brasil,
no Rio de Janeiro. Aí ele fez um trabalho pegando um rapaz do interior, que
vem para a cidade grande sem nenhuma estrutura familiar, se hospeda numa
pensão e se alimenta mal, estuda, trabalha e acaba pegando a tuberculose.
Claro que era eu esse personagem. O outro personagem, para fazer o
contraste, era o milionário, rico, boêmio, que passava as noites na farra e
também pegava a doença. Isso em 1949, 1950. Foi a primeira vez que eu fiz
cinema. Depois fiz O Sol Sobre a Lama. Meu personagem era um caminhoneiro.
O grande problema é que eu não sabia nem dirigir. E como fazer um
caminhoneiro se eu não podia dirigir? Então nas cenas em que o caminhão
estava andando não era eu quem fazia. Quem me substituía nas gravações era
o dono do caminhão, que vestia minha roupa e fazia o papel. Tem uma cena,
que vocês vão ver, em que eu jogo o caminhão em cima de um policial e
depois apareço dizendo assim: “Machucou gracinha?”. No close sou eu
falando, mas quem fez toda a marcação foi o dono do caminhão. Então há
cenas que eu sou um caminhoneiro a favor das pessoas, dos barraqueiros de
água de menino. Eu tinha que passar com o caminhão pelas barracas, mas não
poderia fazer isso sem destruir todas elas, ia matar gente. Sabe como a
gente fazia? Isso que é o grande, é a coisa fantástica! A equipe toda de
maquinária e elétrica, a pesada, como a gente fala, empurrava o caminhão
para mim. E eu lá, bonitinho, dirigindo o caminhão, com uma menina do lado,
loura, Gessy Gesse, minha namorada, e os caras empurrando. E aí eu só
ouvia: “Esse filho da puta tá aí beijando a menina e nós aqui pegando peso,
empurrando esse caminhão de não sei quantas toneladas, pô! Depois fica aí
bonitinho, e a gente aqui pegando pesado. Corta logo essa cena!”. E todo
mundo lá empurrando, e eu com a Gessy Gesse: “Ô meu amor, tudo bem, como
tá?”. Eu nem sabia como se dirigia um caminhão. Muitos anos depois eu vim
fazer Central do Brasil, mas eu já sabia dirigir, eu não tinha problema
nenhum, quem dirigia era eu mesmo.
• Como foi pra você, um ator de teatro, acostumado a atuar de modo
“contínuo”, ter que se adaptar às filmagens no cinema, que são
essencialmente fragmentadas e “descontínuas”?
Não tive muito problema, porque você ensaia e faz. Não tive essa
dificuldade, porque é tudo picotado. Eu fui aprendendo que você tem que
saber o que vai fazer, o que você fez e o que você está fazendo, para dar
uma sequência de interpretação. Então a sequência anterior, eu fiz assim,
assim, assim, nessa sequência eu tenho que fazer isso e na próxima
sequência aquilo, senão fica aquela coisa marcada demais. Com o tempo você
vai se adaptando e não tem problema nenhum.
• O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos certa vez disse o seguinte:
"Desde que rodopiou no chão pedregoso de Cocorobó como o memorável
cangaceiro Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a autoridade cênica
do baiano Othon Bastos tomou de assalto a dramaturgia brasileira. Criou a
partir dali um padrão de domínio e precisão que torna suas performances
inesquecíveis, mesmo quando a lembrança do filme em si não ultrapassa a
primeira noite de sono". Em que circunstâncias o Glauber te convidou para
viver o Corisco? Você tinha alguma noção de que o filme teria essa
importância para a história do nosso cinema, que o seu rosto no cartaz do
filme seria eternizado?
Outro dia vi um pôster que eu considero um dos mais lindos que eu já vi. É
um pôster todo preto com uma rua iluminada que vai subindo e tem um cara na
ponta dessa rua. O texto é o seguinte: “O sucesso não vai a você, você que
tem que ir até ele.” Entende? Ele não vem. A rua tá lá para você ir. Eu
nunca imaginei que eu fosse fazer esse filme. Eu não aguento mais falar
sobre O Deus e Diabo, são quase 45 anos falando sobre a experiência. Eu não
quero viver eternamente de Corisco, ou pensando no Corisco. Fiz, fiz e tá
feito. Tanto é que nunca mais na minha vida eu fiz um cangaceiro. O único
cangaceiro que eu fiz foi o Corisco e acabou-se. Mas tudo começou por uma
questão de acaso. Dizem que acaso nem existe, você tem o seu destino
traçado. Quem ia fazer o filme era outro rapaz, outro ator. Ele era loiro,
bonito, forte, de um metro e oitenta e cinco, para poder ter o duelo final
com o Maurício do Valle, que era um armário de um metro e noventa,
fortíssimo também. Então os dois tinham um duelo final, que o Glauber usou
depois no Dragão da Maldade. Como atrasou O Deus e o Diabo, o Roberto
Pires, que era um diretor dessa geração do cinema baiano, tinha que fazer
um filme no Rio de Janeiro sobre O crime no Sacopã e levou o ator do
Glauber. Eu vim a conhecer o Glauber depois que saí da Escola de Teatro,
porque ele viu vários espetáculos do nosso grupo, Sociedade de Teatro dos
Novos. Nós estávamos construindo o teatro Vila Velha, na Bahia. Glauber ia
lá, frequentava, e uma vez ele me disse: “Olha, Othon, eu vou fazer uma
trilogia e nessa trilogia tem cangaceiro, vaqueiro e camponês, e num desses
filmes você está”. Eu não esperava que ele já estivesse filmando em Monte
Santo. Eles estavam lá filmando e eu estava aqui ensaiando uma peça no
teatro. Um dia quando eu ia saindo da pensão onde eu morava, eu vejo um
jipe parado e um cara todo cabeludo, sujo de terra, sujo de areia, de
barro, batendo de porta em porta e gritando: “Othon Bastos!”. Depois ele ia
para outra porta e eu ouvia de lá: “Não mora ninguém aqui com esse nome!”
Quando eu saí da pensão e vi aquele cara gritando, eu vi que era o Glauber.
Ele também me viu na mesma hora e disse: “Oh! Eu tô atrás de você! Eu vim
aqui te buscar para você fazer o filme, O Deus e o Diabo”. “Glauber, eu não
posso, eu estou ensaiando, eu não posso largar o ensaio para filmar Deus e
o Diabo”. “Não, você tem que ir, você tem que ir, Paulo Gil me disse era
você que tinha que fazer, chegamos num acordo por você, Walter Lima, todo
mundo, você tem que fazer”. “Olha, primeiro eu não tô preparado para isso,
para fazer o filme. Eu tô ensaiando, tô com outro personagem na cabeça,
como é que eu vou fazer?”. Aí ele falou com o diretor da peça, pediu para
ele me liberar. Depois me deu o roteiro, eu li, achei lindo e disse: “Que
maravilha, Glauber! Lindo esse filme! Vamos fazer!”. Bom, em 1962, 1963,
nós estávamos fazendo experiências sobre Bertolt Brecht lá na Bahia. Líamos
as peças de Brecht e discutíamos nas faculdades. Estudávamos sobre
interpretação e distanciamento. No roteiro do Glauber, o Lampião se
encontrava com o Corisco e vinha um flashback. Eu fiquei pensando sobre
isso e disse assim: “Glauber, por que no lugar de ter esse flashback você
não faz uma experiência de colocar o personagem narrando, contando a
história? Por exemplo, eu encontrei com o Lampião e o Lampião me disse:
‘onde é que estão meus irmãos?’”. Aí o Glauber me falou: “Como se fosse uma
experiência brechtiana dentro do cinema?”. Depois disso o Glauber ficou
pensando. “Pô, experimente”, insisti. O que eu digo é o seguinte: o filme O
Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que marcou, que ficou na história
do cinema e até hoje se fala nele. Mas o importante é que um menino de 22,
23 anos, como o Glauber Rocha, aceitou fazer uma experiência como essa
dentro do filme, o segundo longa-metragem dele. Ele arriscou. Essa
experiência poderia ter dado certo, assim como deu, mas poderia ter dado
errado, e as pessoas acabariam com ele, como é que se ousa fazer um filme
dessa maneira? Eu acho que tudo aconteceu por conta dessa generosidade
artística do Glauber. O Corisco é um fogo de artifício que você solta e ele
faz: “Zzzuzuzuuu e roda” (faz com a mão). Então eu disse para Glauber: “Eu
vou entrar rodando e no final eu saio rodando, pra marcar o ciclo dele,
dessa coisa do Corisco, que roda, roda, roda, para o bem e para o mal, para
a vingança e para o amor”. Se você me perguntasse se eu esperava que o
filme teria essa repercussão, eu estaria mentindo para você se eu dissesse
que tinha certeza absoluta, que o filme seria o que foi. Não é verdade.
Primeiro, era uma experiência. Eu não sabia como bateria na tela grande
aquela coisa de rodar, aquela loucura daquele personagem que fala baixo,
lento e tem muita agilidade. Tem uma coisa de quem tem o poder que eu acho
extraordinária. Quem tem o poder não precisa gritar, entendeu? Ele fala com
a convicção de que ele é poderoso, ele não precisa gritar para dizer: “Eu
sou poderoso!”. No momento que você começa a gritar: “Eu sou poderoso”, é
porque você já não é tão poderoso, você já perdeu o poder, você precisa
usar da violência. Não, ele era sempre sereno, tinha uma convicção. Deus e
o Diabo foi isso, foi a história de uma experiência cinematográfica. O
filme, se for visto com atenção, é dividido em dois. Do início até a
entrada do Corisco, o filme tem uma linguagem, ele é todo
stanislavskianamente bem feito, os atores falam, andam e interpretam de uma
maneira. Depois, quando entra o Corisco, ele traz uma outra dimensão, uma
outra visão de cinema. Até hoje é uma experiência que eu guardo. 40, 50
anos depois sempre fico satisfeito de ter feito esse filme. Fico orgulhoso
de ter feito O Deus e o Diabo e ter sido uma experiência bem realizada e
aceita. Até hoje as pessoas quando veem Deus e o Diabo ainda falam: “É um
filme tão moderno, esse filme parece que foi feito hoje”. É um filme,
realmente, que tudo, sabe quando tudo entrosa? Deu tudo certo no filme,
apesar de ter sido um filme paupérrimo (risos). Cinco pessoas trabalhando,
fazendo luz, fazendo tudo. Todo mundo ajudava a fazer tudo, e o Glauber
teve duas pessoas maravilhosas trabalhando junto com ele, que eram o Paulo
Gil Soares e o Walter Lima (Jr.). Quando o Glauber entrou dizendo: “Olha, a
partir de agora o filme vai ser mudado”, todo mundo ficou espantadíssimo,
“Mudado como?”. Foi então que o Glauber explicou a situação e imediatamente
tanto o Walter, como o Paulo Gil embarcaram na experiência. Isso que foi
legal, não teve: “Não, não faça isso, isso é loucura”. Aquele fogo da
juventude, só a juventude tem isso, não tem a hesitação, tem a ousadia.
• O Paulo Honório, do filme São Bernardo, é uma das maiores atuações da
história do cinema brasileiro. Existe um nível de precisão, contenção e
lirismo muito difícil de ser atingido nesse personagem. A própria adaptação
do livro de Graciliano Ramos era arriscada e complexa. No entanto, o filme
do Leon Hirszman consegue se coadunar ao romance, assim como você consegue
se fundir ao personagem do livro. O trabalho de construção do personagem
foi muito laborioso? Como se deu esse processo com o Leon?
O Leon tinha um método de trabalho muito legal. Ele reunia o elenco à
noite, depois do jantar, e nós fazíamos a leitura da cena do dia seguinte,
com os atores reunidos. Discutíamos a cena, como seria feita, e o Leon
passava a visão dele de como o filme se realizaria, em cada sequência. Isso
foi fantástico, porque nos estávamos entranhados dentro do próprio livro,
São Bernardo. Agora, quanto ao Paulo Honório, quando eu li o livro eu
liguei para o Leon, e lhe disse: “Leon, eu não sei se vou poder fazer esse
filme”. Pelo seguinte, você abre na primeira página e o Graciliano te
descreve um cara que tem um tanto de altura, cabelos ruivos, meio sarará,
lábios grossos, mãos enormes. Eu disse: “Não sou eu, pô!”. Porque uma coisa
é você fazer um filme cujo roteiro seja de criação do diretor, ninguém sabe
como era essa história, como foi criada. O público vai ver o filme através
das ações dos atores, o público vai conhecer os personagens através da
interpretação dos atores. Uma adaptação de um romance é mais complicada
porque o cara imagina. Todas as mulheres que leram Dom Casmurro imaginam a
Capitu na cabeça delas, como seria a Capitu. Pode não ser a mesma Capitu,
por exemplo, que o Paulo Cesar Saraceni imaginou. Ele imaginou uma Capitu,
mas que talvez não seja a Capitu imaginada por milhões de pessoas que leram
o romance, e é por isso que é difícil. É muito difícil você interpretar um
personagem que as pessoas já leram e conhecem, já entenderam, já viajaram
no livro, com quem já têm intimidade: “Oi, tudo bem? Eu sou Paulo Honório,
etc. e tal”. Então para você criar um personagem desses, você tem que ter
um apoio, um alicerce muito grande da conversa com o diretor. O diretor é
que vai te dar tudo isso, você traz e discute com ele. E o Leon era um
relógio, era preciso, tudo dele era muito bem trabalhado, muito bem
cuidado, era fantasticamente bem feito. O Leon me disse assim: “Não, não se
preocupe. Não quero saber do personagem como está, eu quero saber o que
você pode me dar do personagem. Eu quero que você me diga politicamente
como você pensa, como você fala através do teu personagem, e isso você vai
me dizendo à proporção que nós vamos discutindo, vamos acordando. Jogaremos
Freud na mesa, Jung e não sei mas o quê. A gente vai discutindo, como é que
você vê, como está dentro de você, vamos conversar e estudar”. E foi assim
que eu tive a coragem de fazer o São Bernardo, que para mim é o grande
filme que eu fiz. O Deus e o Diabo é a grande experiência cinematográfica
da qual eu participei, indiscutivelmente. A ousadia de uma época, de um
grupo jovem fazendo um filme. A história do Corisco foi criada pelo
Glauber, a história é outra coisa. Já Leon criou esse personagem dentro do
livro e ele foi amarrando o filme através do próprio livro. Ele criou, mas
sempre dentro daquele universo, do que poderia ser feito. Ele não abriu
demais, queria dar a dimensão do autor. Isso que é bonito. O filme tem
outras camadas, você tem a história do filme, você tem politicamente o que
poderia acontecer na época, como o Brasil vivia, qual a situação daquele
homem, que do nada se tornou um senhor de engenho, um senhor fantástico.
Para mim, esse foi o filme que eu mais trabalhei no sentido de personagem,
de criação mesmo. Como ator esse é um filme que eu olho e fico contente.
Como fico contente com vários outros. O meu quarteto, que eu chamo quarteto
de Alexandria, tem: Deus e o Diabo, São Bernardo, Os Deuses e os Mortos e
Os Sermões. Se eu não tivesse mais feito cinema eu estaria satisfeito.
• Outro filme importante na sua filmografia é Capitu, de Paulo Cesar
Saraceni. Uma adaptação para as telas do livro Dom Casmurro, de Machado de
Assis. Nesse filme você faz o Bentinho, obcecado pela suposta traição de
sua mulher, Capitu, com seu melhor amigo, Escobar. Enquanto vivenciava o
Bentinho você acreditava no ponto de vista dele? Em algum momento você
chegou a questionar a sanidade do personagem?
Olha, Capitu foi um processo lindo. Eu vinha de O Deus e o Diabo quatro
anos antes e as pessoas achavam que eu não aceitaria fazer nada. Porque eu
recusava tudo, as pessoas ligavam para o Glauber, ele parecia que era meu
agente: “Glauber, você não quer falar com o Othon para ele fazer o meu
filme?”. E o Glauber dizia: “Eu não sou agente do Othon, liga para ele
(risos). Não sou eu que vou resolver, faz esse filme, não faz esse”. Quando
aconteceu o Capitu, o Glauber estava na produção do filme e veio falar
comigo: “Vem, faz esse filme, vamos fazer, vamos fazer, o Paulo quer você”.
Mas acho que não era eu quem ia fazer. Aliás, tem uma coincidência muito
grande, porque muitos filmes que eu fiz na vida não era eu quem ia fazer,
era outro ator. Eu acho que o destino brincou muito comigo: “Calma, o cara
vai fazer. Calma ele não vai fazer mais, é você quem vai fazer”. Sabe, o
destino fez isso comigo. Para fazer o Bentinho eu tinha que ter a convicção
do Bentinho, senão eu não fazia o filme. Eu não podia ter dúvidas, eu tinha
certeza absoluta que aquela mulher me traiu. Se eu ficasse (gestos de
dúvida com o rosto), eu não ia fazer. É por isso que eu sinto o choque no
momento em que eu vejo o Escobar saindo da minha casa à noite. Tudo muda na
minha cabeça. Ele mesmo diz assim: “Ela chora pelo Escobar mais do que a
própria viúva”, entende? Mesmo que não fosse verdade o que ele estava
vendo, na cabeça dele, era verdade. As pessoas podiam olhar e achar que o
menino era parecido com ele, mas ele achava que o menino era parecido com o
Escobar, você tá entendendo? E ele passou a desconfiar da Capitu. Não
adianta, quando há o reverso, você não consegue dormir sem parar de pensar
na pessoa, você ama desesperadamente desde a infância. Não é como hoje:
“Fiquei com a Capitu na rua”. O Bentinho não diz: “Fiquei com a Capitu,
estive com a Capitu”, não tinha isso. (risos). Para conseguir pegar a mão,
dar um beijo, era uma loucura para conseguir isso, tinha que ter a família
inteira. Eu tenho um amigo que diz que quando ele namorava, para ele beijar
a namorada, ele beijava a família inteira antes, beijava o pai, beijava a
mãe, para depois chegar na namorada (risos). Porque ele não podia ir direto
na namorada. Se fizesse assim o pai fazia um escândalo. Então esse homem
era obcecado. Ele vai ao teatro ver o Otelo e ele se sente o Otelo, com
ciúmes, entende? Esse cara realmente… Ele tava em outra dimensão. Esse cara
não podia deixar de ter isso. Ele não podia acreditar que o Escobar fosse
capaz de fazer qualquer coisa com a mulher dele, enfim: “Ela chora mais que
a viúva”. Isso é fantástico, é uma frase rodriguiana, né? “Ela chora mais
que ...”, (risos) e se eu puser isso num personagem do Nelson Rodrigues, é
aceitável. “Ela chora mais do que a viúva”, ela, minha mulher, chora mais
que a viúva, isso é fantástico, né? Esse personagem também me fascinou,
porque eu vinha de rodopios e Brecht, distanciamento, e fui lá dentro, no
âmago do personagem, fui buscar o Bentinho, naquela coisa do olhar. Daí eu
disse: “Bom, agora eu já cumpri minha missão, não faço mesmo cangaceiro e
agora o que vier eu traço”. Foi quando eu fiz O Dragão da Maldade.
• No filme, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, aconteceu o seu
segundo encontro com o Glauber Rocha. Como foi voltar a trabalhar com um
diretor, especialmente com o Glauber? Você tinha alguma ciência de como
seria esse filme pronto, nas telas de cinema? O trabalho de direção de
atores do Glauber era diferente do trabalho dos demais diretores com os
quais você já trabalhou?
O Glauber tinha um método diferente, ele era aquele que fica por trás da
câmera incentivando você: “Vai para direita, agora levanta, corre, senta,
anda”. E você: “Ahan, ahan” (onomatopeia de cansado). A coisa ia
esquentando e você ia. Eu me lembro da cena com o Mário Gusmão, que eu
estou em cima do Gusmão batendo (faz o gesto de quem está batendo). Eu faço
o professor revoltado, para que o negro não fosse escravo, não se deixasse
dominar pelo Coronel, tivesse liberdade. Então fica todo mundo desesperado,
porque eu começo a agredi-lo, para ele reagir e ter depois a mesma reação
com o Coronel. E o Glauber ficava por trás da câmera aos berros: “Mata este
negro! Acaba com ele! Vai, bate, Othon, não tem pena, bate!”. E era assim:
“Pá, pá!” (bate na mão). E coitado do Gusmão... Era só aqui (mostra o
pescoço) no cangote dele: “Mata, mata, eu quero ver sangue nessa disgrama”
(risos). Quando acabou a cena: “Mário Gusmão, meu amor, eu não tenho nada
contra você, é a cena. Mário, machucou? Daqui água, por favor, cuida do
Mário, por favor”. O Glauber era assim, entendeu? Na mesma hora que ele
tava: “Pelo amor de Deus, vê aí álcool, qualquer coisa, machucou? Não é
nada contra você, Mário, o ator Mário, eu quero que a raça negra se
revolte, é isso que eu quero”. E aí a gente morria de rir depois. E o
Glauber para mim sempre foi assim, tem pessoas que detestam, tem diretores
que acham que o Glauber não sabe uma posição de câmera. Outros dizem que
Glauber não sabe dirigir ator, as pessoas não entendem. Ele não me dirigiu
em Deus e o Diabo, ele disse “faça o que você tiver vontade de fazer, e eu
vou direcionando você”. Eu não posso chegar para você: “Faça isso!”. Aí eu
estou impondo uma personalidade. O grande problema do diretor é a
personalidade, ele quer impor no ator a personalidade dele, como ele faria
o papel, aí não dá, né? Outro diretor maravilhoso é o Ruy Guerra. Você
improvisa a cena e ele trabalha em cima da cena que você improvisou. E isso
aí é o trabalho do diretor, por isso que eu acho maravilhoso Os Deuses e o
Mortos.
• Você ganhou dois Candangos de melhor ator no Festival de Brasília com os
filmes Os Deuses e os Mortos, Ruy Guerra, 1970 e Os Sermões, Júlio
Bressane, 1989, além do Kikito, no Festival de Gramado, com São Bernardo,
Leon Hirszman, 1971, entre muitos outros prêmios importantes, não só no
cinema. Em que medida os prêmios estimulam a carreira de um ator? O prêmio
pode ter um efeito contrário também, de impedir que um ator continue se
desenvolvendo por achar que já tem reconhecimento suficiente?
Eu acho que prêmio atrapalha muito a carreira do ator. Eu acho que o prêmio
não devia nem existir, para que prêmio? Eu não faço filme para ganhar
prêmio, eu faço filme porque eu quero fazer o filme, porque eu adoro fazer
filme. Às vezes prêmio me lembra jóquei, você tá correndo para ganhar os 4
mil metros, para ganhar um prêmio. Eu não quero. Quando eu faço, eu faço
por amor, eu faço por que eu quero fazer, porque eu gosto de trabalhar, eu
não sei ficar parado. Fiquei muito tempo parado em cinema, eu fiquei anos
sem fazer cinema, porque as pessoas não me chamavam mais. Achavam que eu só
queria fazer protagonista, seriam incapazes de me chamar para fazer uma
participação num filme. E só depois que algumas pessoas começaram a me
chamar, eu comecei a aceitar e aí foram me chamando de novo. Você vê que
grande parte da minha filmografia são participações. Em Os Deuses e os
Mortos também não era eu quem ia fazer o filme. Quem ia fazer era Walmor
Chagas. Eu estava em casa sentado, lendo o jornal e vi que o Walmor tava
fazendo Hamlet. Eu fui ver no teatro. Depois da peça fui falar com o Walmor
e ele me disse: “Eu vou trabalhar com o Ruy Guerra”. Eu falei: “Vai? Que
maravilha! Um abraço nele!”. Depois tô em casa e leio o jornal que diz
assim: “Walmor Chagas não vai poder fazer o espetáculo por hepatite”. Eu
pensei: “Meu Deus, Walmor Chagas pegou hepatite, e agora? Com toda a
produção já indo para Ilhéus?”. Enquanto eu estava em casa lendo e pensando
sobre isso toca a campainha. Eu abro a porta e é o Paulo José desmantelado,
coitado: “Pelo amor de Deus, o Ruy mandou que eu viesse aqui atrás de você,
para você ir fazer Os Deuses e os Mortos, o Walmor ficou de ...”. Eu disse:
“Acabei de ler. Coitado, pô!”. Eu tive que falar pra ele: “Eu não posso, eu
estou acabando de fazer uma novela na Tupi”, chamava-se Super Plá. “Eu não posso, eu faço o diretor da agência de publicidade da Super Plá”. O Paulo
José então me disse assim: “Vamos lá, quem é o autor?”. Eu falei que era o
Bráulio Pedroso. “Uh! O Bráulio é de teatro, o Bráulio é de cinema, vamos
lá falar com ele!”. Eu cheguei para o Bráulio e ele me disse assim: “O Ruy
chamou você para fazer um filme?”. “É, o Ruy me chamou“. “E quem impende
você de ir?”. “Eu tô na tua novela, né? Eu faço o presidente, o dono da
empresa de publicidade que tá lançando o Super Plá”. Aí ele me disse:
“Então, vais para os Estados Unidos num congresso”. (risos) “Um congresso
em publicidade, você vai para lá, fica lá o tempo que você quiser fazendo
filme. Quando você voltar, você volta para a agência de publicidade”. O
Bráulio me deu licença. Foi quando fui pra Ilhéus fazer Os Deuses e os
Mortos. O meu personagem tem uma cicatriz, uma ferida aqui no rosto, desse
lado todo (passa mão do lado direito), é uma ferida enorme. Se eu fosse
filmar às seis horas da manhã, eu acordava às três para a maquiadora fazer
a maquiagem toda. A maquiagem fedia que era uma loucura, tinha uma coisa
que ela colocava que fedia muito. E eu tinha que ficar com aquilo, tinha
que ficar o dia inteiro com aquilo, e o Ruy tinha aquela mania de pegar
lama e ficar colocando por cima da ferida. Porra, ele tinha essa mania:
“Othon, está limpo tem que sujar mais”. No meio do filme eu tive que mandar
dinheiro para minha mulher, a atriz Martha Overbeck, minha ótima atriz
Martha. Eu estava lá em Ilhéus, botei uma bermuda, uma camisa por fora da
bermuda, um chapéu de palha e fui para o banco com aquela (risos) ferida
enorme. Porra, era um troço hediondo aquela ferida. Eu cheguei no caixa do
banco, cheguei de chapéu, cabisbaixo, virei para mocinha e disse assim:
“Por favor, eu queria mandar um dinheiro para São Paulo”. Ela: “Pois não,
para quem?”. “Martha Overbeck, rua tal, valor tanto”. “Está com o dinheiro
aí?”. “Estou”. Eu peguei e quando entreguei, levantei o rosto, a mulher
olhou: “Ah! Ah! (barulho de susto)” (risos). Eu disse: “Calma, calma”. “Que
susto que o senhor me deu, meu Deus do céu, quando eu olhei essa coisa”.
“Você não vai ficar com nojo de pegar o dinheiro, porque eu estou com essa
ferida, isso tudo aqui é fantasia”. O gerente do banco veio rindo e
perguntei: “O dinheiro vai chegar?”. Ele: “Vai chegar”. “Se não chegar eu
volto de novo aqui” (risos). E outra foi a Norma Bengell, ela não sabia que
o meu personagem tinha essa ferida e eu tinha uma cena de amor com ela, em
cima do cacau, da semente de cacau. Uma cena linda, shakespeariana. Eu
quero que ela me mate. Pego o punhal e encosto aqui (faz um gesto como se
tivesse um punhal no pescoço). Uma coisa meio Ricardo III, aquela coisa do
me mate e tal. Bom, ensaiamos e na hora de filmar eu tô com aquela ferida,
o Ruy sujando de lama aquela porra. Quando acontece a cena, quando eu vou
beijá-la, puta, ela não aguenta, ela quase vomita de nojo e do cheiro
daquela coisa. Quando cortou, a Norma xingou o Ruy, me xingou. Mas vendo o
filme era um negócio. Tinha uma pelezinha que saía, era uma loucura. A moça
da maquiagem (Nena) deve ser citada, porque o trabalho que ela fez foi
primoroso. Ela já era uma maquiadora de cinema. Então Os Deuses e os
Mortos, foi outro filme todo, todo, todo, improvisado no sentido da
interpretação. O Ruy improvisava muito, ele era fantástico. O Leon era um
que ensaiava quatro, cinco horas para fazer de um take só. Não tinha
dinheiro para fazer o segundo take, entendeu? Tinha que ser de primeira,
porque não podia, não tinha dinheiro, era muito caro filmar na época. E o
Ruy também, ensaiava, ensaiava, ensaiava, depois ele chamava o Dib. Foi com
esse filme que o Dib estourou, foi para a Alemanha, ficou não sei quanto
tempo na Alemanha, porque os alemães não acreditavam no que ele tinha feito
sem grua, sem tripé, não tinha nada disso, era câmera na mão mesmo, segura
e firme. O Ruy perguntava: “Dib, queres ver o ensaio?” (imita o sotaque
moçambicano do Ruy Guerra). O Dib: “Pois não, por favor,”. A partir daí já
passava a ser a marcação da cena. O Dib ficava vendo, olhando para as
telhas, para fazer os focos de luz. O Ruy falava: “Tu estás a olhar?”. “Tô
vendo, não se preocupe não”. Era impressionante quando ele colocava aquela
câmera aqui (gesto de câmera no ombro). Era um gênio, é um gênio. Ele fazia
o seguinte: esse olho aqui na câmera (gesto de câmera no olho direito,
pousada no ombro) e com esse olho aqui (olho esquerdo) ficava vendo o que
estava acontecendo. Ele não fecha esse aqui (esquerdo) para ficar só nesse
aqui, não (direito, o da câmera). Tinha uma cena, que o Nelson Xavier abria
a janela e eu fechava a janela para encurralá-lo. Em determinada hora o
Xavier caiu, escorregou. Era para parar a cena na hora que ele escorregou,
mas o Dib desceu com a câmera, levantou junto com o Xavier e tudo continuou
normalmente. Você tinha a impressão que ele não estava prestando atenção,
mas ele sabia tudo, esse cara é um gênio. Aconteceu uma coisa muito
engraçada no início do filme: eu venho andando, o Milton Nascimento atira e
eu caio. Bom, quando fomos filmar o Ruy falou assim (voz imitando a do
Ruy): “Ô Dib, tu ficas aqui com o tripé, não tem mistério a cena, o Othon
vem andando, você vem com ele e em determinado momento você vai ouvir a voz
do Milton, a câmera vai para o Milton, o Milton fala, o outro menino fala e
depois você volta para o Othon, porque ele vai receber um tiro. Trás o
tripé para o Dib”. O Ruy falou para o Ronaldo, que era o assistente do Dib.
O Dib na mesma hora falou para o assistente: “Ronaldo, não trás o tripé
não, eu vou fazer com a câmera na mão”. E o Ruy disse: “Você vai fazer com
a câmera na mão? Uma cena pequena dessa, dele vir andando e você faz com a
câmera na mão? Por que é que você não faz no tripé?”. O Dib falou: “Porque
o tripé treme e eu não vou tremer, o tripé treme e eu não”. Ele não é
fantástico? É um gênio. Vai, o que mais.
• Qual é a diferença entre interpretar um personagem baseado numa figura
histórica, como o presidente Floriano Peixoto, em Policarpo Quaresma, Padre
Antônio Vieira, em Os Sermões e Visconde de Feitosa, em Mauá, o Imperador e
o Rei, e interpretar um personagem original? Você se sente mais "livre"
para criar?
O que eu digo para você é o seguinte, eu não sou autor de roteiro, não sou
roteirista, mas você tem que dar a verdade histórica. Quando você faz uma
adaptação, você pode criar, inventar, mas tem coisas que você não pode
fazer. Você não pode mudar o Floriano Peixoto, você não pode mudar o Barão
de Mauá. Você pode criar talvez em torno disso. Sei lá, alguma coisa íntima
do Barão, algum romance. A gente sabe que ele teve um entrevero com o Dom
Pedro II, então você pode criar um diálogo que não tenha sido o verdadeiro
— porque não tinha gravador na época — ninguém sabe o que um disse para o
outro. Por exemplo, no Mauá, o personagem que eu faço é uma síntese de
vários personagens num só. Você pode reparar que ninguém, nenhum grande
crítico nacional, esses gênios da crítica, ninguém comentou isso. Se você
me pegar da primeira à última cena eu sou exatamente igual. Cabelo branco,
comprido, é exatamente o mesmo personagem, como ele mesmo diz: “O poder não
envelhece, o poder não muda, o poder é o mesmo.” Quando você vai fazer um
filme histórico, você tem que ler sobre a história. O que é que o cara
fazia, como ele era, como ele agia. Aí você traz esse personagem para você,
começa a criar dentro da personalidade do Floriano Peixoto, do Padre
Antônio Vieira. A verdade é a seguinte, quando você faz um filme histórico,
mas que não é a vida de um cara, você faz um episódio dentro do filme.
Portanto você tem que ver como ele agiria naquele período, qual era o
pensamento dele, qual seria a reação dele, se era reacionário, não
reacionário, você vai humanizando o personagem. Começa a imaginar, pega o
livro, as biografias sobre o cara, para saber como ele era desde criança.
Você estuda mesmo para mudar só dentro do possível, não ficar tão fora da
realidade. Já o Padre Antônio Vieira o que era realmente difícil era o
texto. Era preciso uma pessoa profundamente conhecedora do texto. Porque eu
não poderia dizer sandices do Padre Antônio Vieira. Tem uma coisa muito
engraçada nos Sermões. Meu filho ia sempre comigo para ver as filmagens.
Ele não é ator, é designer. Ele sempre diz pra mim: “Ator é louco, não pode
ir à praia, não pode se queimar, não tem fim de semana, não tem nada, não
pode ter ruga. Imagina se eu vou ficar fazendo essas coisas.” Quando ele se
formou em Design, olhou para mim e disse: “A única coisa, realmente, com
que eu posso colaborar com você e com a minha mãe é fazer o book, mais nada
(risos). Não quero nem saber, esse negócio de atuar não leva a lugar
nenhum. Sábado e domingo trabalho, segunda-feira é dia de folga, não dá
não, não pode”. Ele fica falando essas coisas para mim brincando. O Julinho
Bressane, que é outro desvairado, esse é inteligentíssimo, preparadíssimo,
cultíssimo, olhou para o meu filho e disse: “Pô, eu tô procurando o Viera
menino, e o que é que esse menino tá fazendo aqui, meu Deus?”. Eu falei:
“Ô, Julinho, esse menino é meu filho”. O Julio emendou: “Então não tem
outro, o Vieira vai ser ele”. E colocou o Pedro, meu filho, para fazer o
Viera quando ele dá o estalo de Vieira, que é quando seu professor dá uma
reguada na cabeça dele. O Julio disse para o meu filho: “Olha, eu pago,
hein? Vou te pagar, vou dar cachê para você fazer o papel. Não é porque é
filho do Othon que vai entrar de graça não, eu vou pagar.” Eu e Martha,
minha mulher, ficávamos horas com ele: “Vai, não, tá canastrão, não
declama. Fala, não declama”. No dia o Pedro chegou lá e fez numa boa. O
Julinho ficou abismado, ficou apaixonado e na dublagem também. O Julinho
disse assim pra ele: “Fica vendo quantas vezes você quiser”. “Tá bom, tá
bom”. “Tá bom?”. “Tá”. “Pode ir?”. “Pode”. E o Pedro começou a dublar e
quando terminou o Julinho disse: “Eu não acredito, foi de primeira?”. Eu
disse: “Foi, Julinho, qual é o problema?”. O Antônio Abujamra estava
sentado vendo e perguntou para o Julinho se o Pedro tinha feito de
primeira. Julinho: “Fez”. “O outro ator levou horas fazendo aqui, e esse
menino chegou e fez de primeira?”. “Fez de primeira”. “Mas esse menino é
filho de quem?”. “Do Othon Bastos”. E o Abujamra falou: “Eu tenho que
aturar o pai, agora eu vou ter que aturar o filho também” (risos).
• Em Central do Brasil, você faz um caminhoneiro, o César, um homem
solitário, com dificuldade de demonstrar afeto. E é justamente por conta
dessa dificuldade que nasce uma das sequências mais bonitas e tristes do
filme, quando o César sai de caminhão, abandonando a Dora numa parada de
ônibus. Quando você estava filmando essa sequência, você tinha ideia do
filmagem, quando uma sequência vai dar certo nas telas?
Esse caminhoneiro... Só tem uma coisinha que eu preciso falar primeiro.
Quando eles me chamaram para fazer o filme, disseram: “O personagem é um
caminhoneiro, você dirige?”. Eu disse: “Não tem problema, eu dirijo, eu já
estou dirigindo, eu já sei dirigir, não tem o menor problema. É só chegar
lá uma semana, ou cinco dias antes e pegar o caminhão, dar umas voltas”. Aí
tudo bem, eu cheguei, o caminhão era deslumbrante, era um caminhão lindo,
maravilhoso, hidramático, nem era hidramático, mas era de tal maneira que
você tinha uma facilidade. Era um caminhão fantástico. E eu treinei com
esse caminhão, ia para estrada, andava, voltava para estrada. Quando chegou
o Waltinho (Walter Salles), ele disse: “Este caminhão, vocês estão loucos?
Esse caminhão é moderníssimo, não pode ser esse, tem que arranjar um
caminhão mais velho, um caminhão que a gente sinta que é um caminhão
difícil”. Então me trouxeram um caminhão que tinha folga na direção. Eu
tive que dizer: “Waltinho, você quer me matar?”. “Não, tá bem, não tem
problema, vai fazendo”. É um gentleman, o Waltinho é um gentleman, cuida de
você com um carinho, ele é uma pessoa muito legal. “Não, Othon, não se
preocupe, não. Vai treinando, se você não sentir segurança a gente aperta
de um lado, aperta de outro”. Mas sobre a cena, que você me perguntou te
digo que a gente sente pela emoção do momento da filmagem, porque ali é o
grande momento mesmo. Com a Fernanda era ótimo, porque a gente conversava e
falava o que sentia: “Senti assim, temos que passar isso”. O César é toda
uma bondade, uma amizade, e a Dora é uma mulher solitária, que tem a
esperança de ter alguém na vida dela. O César não tem isso, ele tá querendo
fazer aquilo por bondade, pelo menino. O que ele fez ali, faz com outras
pessoas também, ele tem isso nele, ele não quer o compromisso com alguém. E
a cena, depois que foi feita, a gente sabia que teria um impacto grande,
porque realmente tem. Você não espera que ele vá embora, você acha que vai
estar ali esperando por ela. Mas, se você reparar, na hora que a Dora
oferece a cerveja, ele não quer beber e ela diz: “Beba, beba.” Ela pega na
mão dele e você sente que não é aquilo, que os vetores eram outros. Você
perceber um constrangimento dele em beber, uma coisa que ele não está
acostumado.
• Quando você foi convidado pela Laís Bodanzky para fazer o seu Wilson, de
Bicho de Sete Cabeças, ficou com medo de criar um pai reacionário demais,
uma espécie de vilão maniqueísta? Você fez algum tipo de laboratório para
construir o personagem?
A Laís é uma diretora exigente, minuciosa. Ela tem muito cuidado com as
coisas que faz para não sair do caminho que ela quer. Mas, ao mesmo tempo,
era maleável, porque você podia dar opinião também: “Você não acha isso?”.
Em determinados casos ela era persistente e dizia: “Não, eu quero assim”.
Eu fui o primeiro ator com quem a Laís falou do Bicho de Sete Cabeças: “Eu
tô fazendo um filme, eu queria que você trabalhasse nesse filme, fizesse o
pai”. E ela começou a mandar os roteiros: “Olha, estou mandando o primeiro,
mandando o terceiro, nono, décimo”. Eu fui uma das primeiras pessoas a ler.
Depois ela me disse: “Que tal o fulano para o papel?”. Eu dizia: “Ótimo!”.
Então ela disse: “Eu quero o Rodrigo Santoro, porque ele fez muito bem
aquele padre daquela minissérie, Hilda Furacão, eu senti que ele era
humano, que tem um calor humano muito grande. Eu acho que vai fazer esse
personagem muito bem.” Eu disse: “Eu não conheço o Rodrigo muito, quer
dizer, vi a minissérie, o trabalho dele era muito bom, não conheço ele
assim, intimamente”. Aí eu o conheci e nós começamos a trabalhar. Fizemos
vários laboratórios e tivemos um preparador de elenco muito bom, o Sérgio
Penna. Ele era maravilhoso. O Sérgio pegou a turma dos loucos mesmo, e
colocou todo mundo dentro do trabalho desse processo. Por isso ele
conseguiu trabalhos maravilhosos de todo o elenco... O bom do Sérgio é que
ele assistia a um ensaio, por exemplo, aquela cena que eu descubro o
brinco: “Que é isso na sua cara?”. Ele assistia ao ensaio, depois falava,
dava uns toques, mas eram uns toques sempre muito conscienciosos, não era
um toque de exibicionista: “Você tem que fazer assim!” Não, era uma coisa
sempre muito humana: “O pai não faria assim, você não acha?“ Eu dizia:
“Acho, é verdade, boa ideia”.
• Como foi o encontro com o Nelson Pereira dos Santos? Você trabalhou com
vários diretores importantes para a história do cinema brasileiro: Glauber,
Leon, Joaquim Pedro, mas só veio a atuar num filme do Nelson em 2006. Como
surgiu esse convite?
Eu estava em casa e aí recebi um telefonema: “Othon?” (faz uma voz de
moribundo). Eu perguntei: “Quem tá falando?”. “Nelson Pereira dos Santos”.
“Ô, Nelsinho, querido, como é que você vai, tudo bem?” “É, caminhando,
vamos indo!”. “Aconteceu alguma coisa?”. “Não, eu tô ligando para você,
porque eu quero te convidar para fazer um filme, eu só estou convidando os
amigos. Já convidei fulano, já convidei Otávio Augusto, colegas seus,
amigos. Talvez seja o meu último filme e eu quero reunir nesse meu último
filme os meus amigos”. “Porra, Nelsinho, você não precisa nem hesitar,
claro que eu vou”. “É uma participação”. “Claro que eu vou”. “Você pode vir
aqui amanhã, aí a gente conversa, vê o cachê. Como você sabe cinema
brasileiro tem sempre dificuldades, é um cachê simbólico”. “Ô, Nelson,
porra, para com isso, só em estar trabalhado com você de amizade, nem pensa
em dinheiro, vamos lá.” “Você vem aqui amanhã, vem?”. “Vou sim.” Ele marcou
comigo três e meia da tarde lá na Tijuca. Quando cheguei no estúdio, na
Tijuca, falei assim: “Filme do Nelson?”. “Ah tá, lá naquela sala, sobe a
escada, tá todo mundo lá”. Eu cheguei na sala e encontrei o Nelson animado:
“Pô, foi uma loucura, num sei o que, câmera vem pá, chega na primeira
cena...” Eu digo: “Nelson, ontem você tava falando comigo daquela maneira,
como se tivesse morrendo e hoje eu chego aqui e encontro você eufórico, o
que é isso?” “Ah, porque se eu convidasse você na euforia, você talvez não
aceitasse, então eu tive que fazer aquele drama todo para você vir fazer o
filme”. Foi um ótimo trabalho. O Nelson é um tremendo diretor. No dia que
ele assumiu a Academia Brasileira de Letras, todos nós fomos. Eu cheguei
para ele e disse assim: “Nelson, a partir de hoje não adianta você fazer
nenhum tipo de cinema mais avançado”. Ele perguntou: “Por quê?”. “Porque
você agora é acadêmico, (risos) todo o filme teu será acadêmico”.
• Além de você ser um dos maiores atores do cinema brasileiro, a sua voz é
uma das mais conhecidas não só no cinema, mas em narrações de filmes
comerciais, institucionais e audiovisuais diversos. Como é interpretar
somente com a voz?
Uma das coisas que eu mais gosto de fazer é narrar, então quando me pedem
para narrar eu aceito porque adoro. Acabei de fazer um trabalho enorme
sobre um artista plástico de Pernambuco, umas 20, 25 laudas de texto. Uma
coisa enorme. Eu faço o alter ego dele, ele conversa comigo, eu esculacho
com ele, brigo. Eu faço muitos trabalhos de narração porque tenho muito
prazer nisso. Fiz um trabalho para faculdade de Brasília sobre literatura
de cordel, que era maravilhoso também, toda narração entrecortada com os
cordelistas e os cantadores de cordel, dando exemplos. Outro que fiz foi o
Risco. O filme é sobre um rapaz que passa o dia inteiro com uma pedra na
mão riscando os muros, ele vai riscando, ele anda de um lado, anda de
outro, depois ele volta. Eu fiz a narração dessa história impressionante,
um jovem que fica andando, ninguém sabe a razão, nunca chegou a conversar
com ninguém. Agora os comerciantes locais dão comida para ele, dão café.
Ele faz muito isso no cemitério São João Batista, no Parque Lage. Ele risca
e vai, aí ele volta de novo. Não ataca ninguém, não ofende ninguém, só fica
fazendo isso. Quando eu faço uma narração de algo eu peço para não ver o
que eu vou narrar, entendeu? Então eu leio o roteiro e imagino como eu
narraria aquilo. Eu não sei como são as imagens, eu só sei que tal trecho
tem que ter 20 segundos, 30 segundos. Eu peço sempre para não ver, porque
às vezes pode mudar a minha ótica. Porque o bom é você contar como se você
tivesse contando um fato. Eu sei que eu sempre quero contar, como se eu
tivesse contando uma história. Você narra para despertar na pessoa um
interesse, uma curiosidade. Tem pessoas que narram maravilhosamente bem,
né? O Paulo José é um narrador brilhante. O que fazemos é uma
interpretação, não é uma vivência, é uma interpretação do que você está
vendo, uma interpretação quase pessoal. Acabou?
Filmografia
1 Nosso Lar (2010), Wagner Assis
2 Quincas Berro d’Água (2010), Sérgio Machado
3 Orquestra dos Meninos (2008), Paulo Thiago
4 O Engenho de Zé Lins (2007), Wladimir Carvalho (narração)
5 O Passageiro — Segredos de Adulto (2006), Flávio R. Tambellini
6 Zuzu Angel (2006), Sérgio Rezende
7 Brasília 18% (2006), Nelson Pereira dos Santos
8 O Coronel e o Lobisomem (2005), Maurício Farias
9 Cascalho (2004), Tuna Espinheira
10 Irmãos de Fé (2004), Moacyr Góes
11 Glauber, o Filme — Labirinto do Brasil (2003), Silvio Tendler
12 Poeta de Sete Faces (2002), Paulo Thiago
13 Barra 68 — Sem Perder a Ternura (2001), Wladimir Carvalho (narração)
14 Abril Despedaçado (2001), Walter Salles
15 Bicho de Sete Cabeças (2001), Laís Bodanzky
16 3 Histórias da Bahia (2001), Edyala Yglesias, José Araripe Jr. e Sérgio Machado
17 Condenado à Liberdade (2001), Emiliano Ribeiro
18 Villa-Lobos — Uma Vida de Paixão (2000), Zelito Viana
19 A Hora Marcada (2000), Marcelo Taranto
20 A Terceira Morte de Joaquim Bolívar (2000), Flávio Cândido
21 Mauá — O Imperador e o Rei (1999), Sérgio Resende
22 Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1998), Paulo Thiago
23 Central do Brasil (1998), Walter Salles
24 O Cangaceiro (1997), Anibal Massaini Neto
25 O que é Isso, Companheiro? (1997), Bruno Barreto
26 A Grande Noitada (1997), Denoy de Oliveira
27 Sombras de Julho (1995), Marco Altberg
28 Menino Maluquinho — O Filme (1994), Helvécio Ratton
29 Conterrâneos Velhos de Guerra (1991), Wladimir Carvalho (narração)
30 Sermões — A História de Antônio Vieira (1989), Júlio Bressane
31 Mistério no Colégio Brasil (1988), José Frazão
32 Chico Rei (1985), Walter Lima Jr.
33 A Próxima Vítima (1983), João Batista de Andrade
34 Das Tripas Coração (1982), Ana Carolina Teixeira Soares
35 Ao Sul do Meu Corpo (1982), Paulo Cesar Saraceni
36 O Homem do Pau-Brasil (1982), Joaquim Pedro de Andrade
37 Linha de Montagem (1982), Renato Tapajós (narração)
38 Os Anos JK — Uma Trajetória Política (1980), Silvio Tendler (narração)
39 Fogo Morto (1976), Marcos Farias
40 O Predileto (1975), Roberto Palmari
41 Triste Trópico (1974), Arthur Omar (narração)
42 Longo Caminho da Morte (1972), Júlio Calasso Jr. (narração)
43 Herança do Nordeste (1972), Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno e Sérgio Muniz (narração)
44 São Bernardo (1971), Leon Hirszman
45 Os Deuses e os Mortos (1970), Ruy Guerra
46 Tostão — A Fera de Ouro (1970), Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite (narração)
47 O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Glauber Rocha
48 Capitu (1968), Paulo César Saraceni
49 Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Glauber Rocha
50 Sol Sobre a Lama* (1963), Alex Viany
51 O Pagador de Promessas (1962), Anselmo Duarte
*Filmado em 1960, Sol Sobre a Lama foi o primeiro longa-metragem de ficção em que Othon Bastos trabalhou.
OTHON BASTOS, ATOR BRASILEIRO
Luís Alberto Rocha Melo
Foi quase por acaso que o teatro surgiu na vida do baiano sertanejo Othon José de Almeida Bastos. Em 1950, ainda adolescente, foi levado por um amigo a fazer um teste com Paschoal Carlos Magno, que havia recém-inaugurado o Teatro Duse, no Rio de Janeiro. O Duse foi sua verdadeira escola de teatro. É lá que Othon aprendeu “todos os segredos de um espetáculo”, da maquiagem à construção dos cenários1.
Ainda que a popularidade de Othon Bastos no cinema e na televisão seja inegável, o teatro é seu grande esteio, veículo de alguns dos mais importantes trabalhos que o ator desenvolveu dos anos 1950 até pelo menos meados dos anos 1980. Dos três meios de expressão, o cinema é o mais tardio. Mesmo a televisão veio antes (1957), ainda assim pelas mãos do teatro (Grande Teatro Tupi, de Sérgio Britto, e do Teatrinho Trol, de Fábio Sabag).2
Quando, em 1957, o cenógrafo e diretor pernambucano Eros Martim Gonçalves convidou Othon Bastos para trabalhar no Teatro da Universidade da Bahia, em Salvador, um novo capítulo se abriu na trajetória do ator. Em três anos, participou de oito montagens, interpretando textos de autores como Arthur Azevedo, August Strindberg e Antônio Callado. De 1957 a 1966, manteve-se ligado à vida cultural de Salvador, acompanhando e impulsionando alguns dos mais significativos momentos da cena teatral e cinematográfica da cidade, tais como a própria Escola de Teatro (1957-59), na qual conviveu com Otoniel Serra, Gianni Ratto, Geraldo Del Rey, Helena Ignez, Lina Bo Bardi, Walter Smetak, Koellreutter e Yanka Rudzka. Também fez parte da fundação da Sociedade Teatro dos Novos (1960) — liderada por João Augusto Azevedo, com Echio Reis, Sonia Robatto e Carlos Petrovich, grupo responsável pela construção do Teatro Vila-Velha — e do chamado “ciclo baiano” de cinema, do qual tomou parte interpretando papéis secundários em O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Tocaia no asfalto (Roberto Pires, 1962) e Sol sobre a lama (Alex Viany, 1963).
Esse rico período em Salvador foi certamente decisivo para a sua posterior projeção nacional e internacional, quando interpretou o personagem Corisco em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964). O período em que o ator passou na Bahia também foi importante pela concretização da união com a atriz Martha Overbeck, com quem o ator se casou, formando uma produtiva parceria.3
Em 1971, no período mais sangrento da ditadura militar, Othon Bastos e Martha Overbeck fundam a Othon Bastos Produções Artísticas, sediada em São Paulo. A companhia durou até 1984, dissolvendo-se após a montagem de Dueto para dois, com texto do inglês Tom Kempinski e direção de Antônio Mercado. É uma data sintomática, pois marca também o fim dos “anos de chumbo” e o início da redemocratização, com a campanha pelas eleições livres.
As peças montadas por Othon e Martha Overbeck — entre elas, Castro Alves pede passagem (1971), com texto e direção de Gianfrancesco Guarnieri e músicas de Toquinho; Um grito parado no ar (1973), com texto de Guarnieri e direção de Fernando Peixoto; a premiada Caminho de volta (1974), de Consuelo de Castro, co-direção de Fernando Peixoto e Gianni Ratto; Ponto de partida (1976), com texto de Guarnieri, músicas de Sérgio Ricardo e, novamente, direção de Fernando Peixoto; Murro em ponta de faca (1978), com direção de Paulo José, cenografia e figurinos de Gianni Ratto e músicas de Chico Buarque; e Calabar: O elogio da traição (1980), de Chico Buarque e Ruy Guerra, realizada em parceria com o Teatro Vivo, de Renato Borghi, e direção de Fernando Peixoto — caracterizaram-se por uma clara postura de resistência ao regime militar e à censura. Ponto de partida, por exemplo, baseia-se no assassinato do jornalista Vladimir Herzog na prisão, ambientando a ação em uma hipotética Idade Média espanhola.
A trajetória de Othon Bastos se torna ainda mais rica se pensarmos nela não em separado, mas em consonância com seu trabalho no cinema, igualmente rico em significados políticos e afinado às experiências estéticas desenvolvidas por alguns realizadores, em particular aqueles ligados ao movimento do cinema novo.
Vale notar que a solidez da formação teatral de Othon Bastos conferiu ao seu trabalho no cinema um curioso contraponto à noção de “espontaneidade” do gesto documental cinemanovista (a câmera na mão). Esse contraste foi magistralmente explorado por Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol e também por Ruy Guerra em Os deuses e os mortos (1970), este último fotografado por Dib Lufti. Outros filmes, no entanto, tenderam ao estático, como se a câmera buscasse uma “disciplina” equivalente a do ator: certas passagens de Capitu (Paulo César Saraceni, 1968), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969), e sobretudo São Bernardo (Leon Hirszman, 1972).
Um rosto, um símbolo. Talvez Corisco tenha se tornado, de fato, uma espécie de marca registrada um tanto prejudicial para a carreira cinematográfica de Othon Bastos. Mas basta lembrar que, se em 1963 ele desempenhou o papel do “cangaceiro de duas cabeças”, cinco anos mais tarde viveu o dilacerado Professor de “O Dragão da Maldade...”, personagem que diverge muito do anterior. Diferente do que ocorre no expressionista Corisco, a progressão dramática do Professor se dá interiormente. Mesmo quando transbordam a dor, o ódio ou a angústia, existe sempre algo que nos escapa — mas que se fixa em algum ponto cego da sensibilidade do espectador, e que se transforma em referência. Ácido, individualista, irônico, alcoólatra, o Professor não é uma continuidade de Corisco, mas sim de Paulo Martins, o poeta de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967).
Um rosto, um símbolo? Sim, mas na medida em que serve a um comprometimento maior com o sentido político da arte. É o caso da participação de Othon Bastos em Libertários, curta-metragem de 1976 realizado em 16mm, em preto e branco, dirigido por Lauro Escorel Filho. O filme trata do movimento anarquista entre o operariado paulista na passagem do século XIX para o século XX, e apresenta imagens impressionantes dos trabalhadores nas fábricas. Othon Bastos é o narrador e, a certa altura, surge também em um primeiro plano estático, frontal, mudo, olhando para a objetiva, tal como em uma foto de identificação ou um retrato para a posteridade. Está caracterizado, de forma minimalista e muito eficiente, como um operário italiano anarquista: o bigode é o traço exterior mais marcante; o olhar — ao mesmo tempo para dentro e para fora, ao mesmo tempo de derrota e de desafio — cria o elo implícito entre o que se diz sobre a repressão de 1917 e a ditadura militar em vigor em 1976.
A expressão desse olhar curiosamente faz lembrar a de outro personagem fotografado pelo mesmo Lauro Escorel, personagem “oposto” ao desse operário anarquista: trata-se de Paulo Honório, o latifundiário de São Bernardo, de Leon Hirzsman. Em Libertários a própria imobilidade do operário o impede de curvar-se ou de abaixar a cabeça. É como se, para ele, a história ainda se mantivesse suspensa; momentaneamente derrotado, ainda resta olhar adiante. Ao contrário, em São Bernardo, o plano final de Paulo Honório — novamente um enquadramento frontal, explorando ao máximo as nuances no olhar que o ator empresta ao protagonista, enquanto o discurso interior se desenrola — culmina com um lento gesto de apagamento. O rosto se abaixa, o corpo se curva sobre a mesa e o personagem fixa a luz de uma vela que aos poucos se extingue.
Essa coerência ideológica que estabelece uma ponte entre personagens tão diversos — um cangaceiro, um intelectual, um operário, um latifundiário —, confere uma expressiva unidade ao trabalho de Othon Bastos no cinema, sobretudo nesse período entre 1964 e o início dos anos 1980. O ator foi marcado por essa performance política, a tal ponto que será difícil dissociar da sua própria figura um certo “peso” dramático pouco afeito a personagens ligeiros.
A sua participação em Libertários está longe de ser uma exceção. De 1969 a 1981, Othon Bastos narrou diversos filmes entre longas e curtas, incluindo três importantes marcos do documentarismo brasileiro dos anos da “abertura” militar: Braços cruzados, máquinas paradas (Sérgio Toledo e Roberto Gervitz, 1979), Os anos JK (Sílvio Tendler, 1980) e Linha de montagem (Renato Tapajós, 1981).4
Menos lembrada, no entanto, é sua participação em trabalhos dissociados do movimento cinemanovista, mas igualmente importantes em termos de significação cultural e experimentação estética. Pode-se citar filmes como O longo caminho da morte, desconhecido longa-metragem de Júlio Calasso realizado em 1970, obra ligada ao chamado “ciclo do cinema marginal”; a narração de Tristes trópicos (Arthur Omar, 1974), uso nada inocente da credibilidade de uma voz; e Das tripas coração, de Ana Carolina, filme realizado em 1982 pertencente à trilogia iniciada por Mar de rosas (1977) e completada dez anos depois por Sonho de valsa.
A partir da segunda metade dos anos 1990 até os dias atuais, é prolífica a sua participação no cinema brasileiro. Othon Bastos foi, entre outros diversos personagens, um padre em Menino Maluquinho, o filme (Helvécio Ratton, 1995); um industrial em crise em A grande noitada (Denoy de Oliveira, 1997); um caminhoneiro evangélico em Central do Brasil (Walter Salles, 1998); um pai reacionário em Bicho de sete cabeças (Laís Bodansky, 2000); o governador da colônia espiritual de Nosso lar (Wagner de Assis, 2010). Como narrador, sua voz continuou associada a temas de caráter político ou histórico (Barra 68 – Sem perder a ternura, 2001, e O engenho de Zé Lins, 2008, ambos de Wladimir Carvalho).
Há cerca de um ano, ou menos, na livraria de um cinema da Zona Sul carioca, notei a presença de um sujeito baixo, grisalho, que permanecia durante vários minutos com a cabeça baixa, os cotovelos apoiados no balcão de vidro, as palmas das mãos sobre o rosto, como se o ato de comprimir os olhos o ajudasse a fugir do ambiente que o rodeava. Como ele estava de costas, mal conseguia ver o seu rosto. Insisti em observá-lo nessa posição, e é claro que ele não me notou. Era Othon Bastos, o ator.
No Festival de Brasília de 2008, em que participei com o curta-metragem Que cavação é essa? (co-direção de Estevão Garcia) na competitiva 35 mm, fui ao debate sobre a restauração de São Bernardo e, na mesa, entre outros convidados, lá estava Othon Bastos. Durante a fala dos demais palestrantes, o mesmo gesto contrito e enigmático: os dedos pressionando os olhos, a boca desenhando uma expressão de quase desagrado, o olhar aparentemente ausente. Na hora em que teve de falar, um inesperado sorriso, olhos de um brilho contrabandeado de algum lugar do passado e a voz, potente, sonora, projetada para que o último assistente adormecido percebesse que alguém ali falava. O que foi dito era igualmente interessante (a forma sensível de Leon Hirzsman preparar os atores e dirigir, em tempos pré-Fátima Toledo), mas é impossível não se lembrar da sonoridade da voz, antes mesmo do sentido das palavras. Foi o meu segundo “encontro” com o ator.
A primeira vez que vi Othon Bastos deve ter sido por volta do início de 1986, em uma espécie de hotel-fazenda no interior do Estado do Rio, quando por ali se gravava uma sequência de “vaquejada” para a novela Roque Santeiro. Eu estava passando uma temporada de férias em uma cidadezinha bem próxima e fui com um amigo ver as gravações da novela, que reunia todo o elenco principal. São poucas as lembranças das cenas propriamente ditas, mas uma imagem ficou gravada para sempre: Maurício do Valle, Yoná Magalhães e Othon Bastos conversando durante um intervalo de gravação. Era como ver Antônio das Mortes, Rosa e Corisco amigavelmente batendo papo em torno de uma mesinha com guarda-sóis, entre goles de água mineral para abrandar o calor.
É que era ainda muito recente o impacto de ter assistido pela primeira vez, com 16 anos, em uma precária cópia 16mm, ao filme Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), em uma inesquecível sessão no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Lembro-me como se fosse ontem do que senti diante do grande close de Corisco, sujo de sangue, olhando para a câmera e vociferando: “Lampião bateu, chutou, cuspiu na cara dele!!!” Desde então, Othon Bastos ficou marcado para mim como um “ator do cinema brasileiro”. Isso significava, em uma palavra, frontalidade: um encarar a câmera/o espectador com olhos vítreos, uma determinada forma de escandir as palavras e de construir a frase, com uma cadência quase musical — melhor dizendo, teatral. Um ator de cinema brasileiro; um ator brasileiro de cinema.
Permito-me aqui, por meio deste epílogo — um depoimento pessoal —, expressar a minha relação com este ator, que não conheço pessoalmente, mas admiro de longa data.
1 BASTOS, Othon. Depoimento prestado a Simon Khoury. In: KHOURY, Simon. Atrás da máscara 2. Segredos pessoais e profissionais de grandes atores brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 76.
2 Desde então, Othon Bastos apareceu em inúmeros seriados, minisséries, programas especiais e novelas, não só na TV Globo como na Bandeirantes, Manchete e SBT.
3 Com Martha, Othon Bastos integrou o elenco do teatro Oficina, nas remontagens de Os pequenos burgueses, O rei da vela, Galileu Galilei e Na selva das cidades (1968-69).
4 Entre os curtas, destacam-se as séries “A condição brasileira”, produzida por Thomaz Farkas e dirigida por Geraldo Sarno, e “Brasiliana”, de Már io Kuperman, ambas realizadas nos anos 1970.