Textos

Entrevista com Othon

• O filme, O Sol Sobre a Lama, de Alex Viany, marcou sua estreia num set de cinema, não é mesmo?
Cena do filme O Sol Sobre a LamaExato. O Sol Sobre a Lama foi o primeiro filme longa-metragem que eu fiz na vida. Até então eu tinha feito um documentário sobre tuberculose. Era um estudo do Ministério da Saúde. Pediram a um jornalista para fazer um filme sobre a tuberculose, porque a doença estava se agravando muito no Brasil, no Rio de Janeiro. Aí ele fez um trabalho pegando um rapaz do interior, que vem para a cidade grande sem nenhuma estrutura familiar, se hospeda numa pensão e se alimenta mal, estuda, trabalha e acaba pegando a tuberculose. Claro que era eu esse personagem. O outro personagem, para fazer o contraste, era o milionário, rico, boêmio, que passava as noites na farra e também pegava a doença. Isso em 1949, 1950. Foi a primeira vez que eu fiz cinema. Depois fiz O Sol Sobre a Lama. Meu personagem era um caminhoneiro. O grande problema é que eu não sabia nem dirigir. E como fazer um caminhoneiro se eu não podia dirigir? Então nas cenas em que o caminhão estava andando não era eu quem fazia. Quem me substituía nas gravações era o dono do caminhão, que vestia minha roupa e fazia o papel. Tem uma cena, que vocês vão ver, em que eu jogo o caminhão em cima de um policial e depois apareço dizendo assim: “Machucou gracinha?”. No close sou eu falando, mas quem fez toda a marcação foi o dono do caminhão. Então há cenas que eu sou um caminhoneiro a favor das pessoas, dos barraqueiros de água de menino. Eu tinha que passar com o caminhão pelas barracas, mas não poderia fazer isso sem destruir todas elas, ia matar gente. Sabe como a gente fazia? Isso que é o grande, é a coisa fantástica! A equipe toda de maquinária e elétrica, a pesada, como a gente fala, empurrava o caminhão para mim. E eu lá, bonitinho, dirigindo o caminhão, com uma menina do lado, loura, Gessy Gesse, minha namorada, e os caras empurrando. E aí eu só ouvia: “Esse filho da puta tá aí beijando a menina e nós aqui pegando peso, empurrando esse caminhão de não sei quantas toneladas, pô! Depois fica aí bonitinho, e a gente aqui pegando pesado. Corta logo essa cena!”. E todo mundo lá empurrando, e eu com a Gessy Gesse: “Ô meu amor, tudo bem, como tá?”. Eu nem sabia como se dirigia um caminhão. Muitos anos depois eu vim fazer Central do Brasil, mas eu já sabia dirigir, eu não tinha problema nenhum, quem dirigia era eu mesmo.

• Como foi pra você, um ator de teatro, acostumado a atuar de modo “contínuo”, ter que se adaptar às filmagens no cinema, que são essencialmente fragmentadas e “descontínuas”?
Não tive muito problema, porque você ensaia e faz. Não tive essa dificuldade, porque é tudo picotado. Eu fui aprendendo que você tem que saber o que vai fazer, o que você fez e o que você está fazendo, para dar uma sequência de interpretação. Então a sequência anterior, eu fiz assim, assim, assim, nessa sequência eu tenho que fazer isso e na próxima sequência aquilo, senão fica aquela coisa marcada demais. Com o tempo você vai se adaptando e não tem problema nenhum.

• O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos certa vez disse o seguinte: "Desde que rodopiou no chão pedregoso de Cocorobó como o memorável cangaceiro Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a autoridade cênica do baiano Othon Bastos tomou de assalto a dramaturgia brasileira. Criou a partir dali um padrão de domínio e precisão que torna suas performances inesquecíveis, mesmo quando a lembrança do filme em si não ultrapassa a primeira noite de sono". Em que circunstâncias o Glauber te convidou para viver o Corisco? Você tinha alguma noção de que o filme teria essa importância para a história do nosso cinema, que o seu rosto no cartaz do filme seria eternizado?
Cena do filme Deus e o Diabo na Terra do SolOutro dia vi um pôster que eu considero um dos mais lindos que eu já vi. É um pôster todo preto com uma rua iluminada que vai subindo e tem um cara na ponta dessa rua. O texto é o seguinte: “O sucesso não vai a você, você que tem que ir até ele.” Entende? Ele não vem. A rua tá lá para você ir. Eu nunca imaginei que eu fosse fazer esse filme. Eu não aguento mais falar sobre O Deus e Diabo, são quase 45 anos falando sobre a experiência. Eu não quero viver eternamente de Corisco, ou pensando no Corisco. Fiz, fiz e tá feito. Tanto é que nunca mais na minha vida eu fiz um cangaceiro. O único cangaceiro que eu fiz foi o Corisco e acabou-se. Mas tudo começou por uma questão de acaso. Dizem que acaso nem existe, você tem o seu destino traçado. Quem ia fazer o filme era outro rapaz, outro ator. Ele era loiro, bonito, forte, de um metro e oitenta e cinco, para poder ter o duelo final com o Maurício do Valle, que era um armário de um metro e noventa, fortíssimo também. Então os dois tinham um duelo final, que o Glauber usou depois no Dragão da Maldade. Como atrasou O Deus e o Diabo, o Roberto Pires, que era um diretor dessa geração do cinema baiano, tinha que fazer um filme no Rio de Janeiro sobre O crime no Sacopã e levou o ator do Glauber. Eu vim a conhecer o Glauber depois que saí da Escola de Teatro, porque ele viu vários espetáculos do nosso grupo, Sociedade de Teatro dos Novos. Nós estávamos construindo o teatro Vila Velha, na Bahia. Glauber ia lá, frequentava, e uma vez ele me disse: “Olha, Othon, eu vou fazer uma trilogia e nessa trilogia tem cangaceiro, vaqueiro e camponês, e num desses filmes você está”. Eu não esperava que ele já estivesse filmando em Monte Santo. Eles estavam lá filmando e eu estava aqui ensaiando uma peça no teatro. Um dia quando eu ia saindo da pensão onde eu morava, eu vejo um jipe parado e um cara todo cabeludo, sujo de terra, sujo de areia, de barro, batendo de porta em porta e gritando: “Othon Bastos!”. Depois ele ia para outra porta e eu ouvia de lá: “Não mora ninguém aqui com esse nome!” Quando eu saí da pensão e vi aquele cara gritando, eu vi que era o Glauber. Ele também me viu na mesma hora e disse: “Oh! Eu tô atrás de você! Eu vim aqui te buscar para você fazer o filme, O Deus e o Diabo”. “Glauber, eu não posso, eu estou ensaiando, eu não posso largar o ensaio para filmar Deus e o Diabo”. “Não, você tem que ir, você tem que ir, Paulo Gil me disse era você que tinha que fazer, chegamos num acordo por você, Walter Lima, todo mundo, você tem que fazer”. “Olha, primeiro eu não tô preparado para isso, para fazer o filme. Eu tô ensaiando, tô com outro personagem na cabeça, como é que eu vou fazer?”. Aí ele falou com o diretor da peça, pediu para ele me liberar. Depois me deu o roteiro, eu li, achei lindo e disse: “Que maravilha, Glauber! Lindo esse filme! Vamos fazer!”. Bom, em 1962, 1963, nós estávamos fazendo experiências sobre Bertolt Brecht lá na Bahia. Líamos as peças de Brecht e discutíamos nas faculdades. Estudávamos sobre interpretação e distanciamento. No roteiro do Glauber, o Lampião se encontrava com o Corisco e vinha um flashback. Eu fiquei pensando sobre isso e disse assim: “Glauber, por que no lugar de ter esse flashback você não faz uma experiência de colocar o personagem narrando, contando a história? Por exemplo, eu encontrei com o Lampião e o Lampião me disse: ‘onde é que estão meus irmãos?’”. Aí o Glauber me falou: “Como se fosse uma experiência brechtiana dentro do cinema?”. Depois disso o Glauber ficou pensando. “Pô, experimente”, insisti. O que eu digo é o seguinte: o filme Othon Bastos como centro das atenções, no meio da gravação.O Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que marcou, que ficou na história do cinema e até hoje se fala nele. Mas o importante é que um menino de 22, 23 anos, como o Glauber Rocha, aceitou fazer uma experiência como essa dentro do filme, o segundo longa-metragem dele. Ele arriscou. Essa experiência poderia ter dado certo, assim como deu, mas poderia ter dado errado, e as pessoas acabariam com ele, como é que se ousa fazer um filme dessa maneira? Eu acho que tudo aconteceu por conta dessa generosidade artística do Glauber. O Corisco é um fogo de artifício que você solta e ele faz: “Zzzuzuzuuu e roda” (faz com a mão). Então eu disse para Glauber: “Eu vou entrar rodando e no final eu saio rodando, pra marcar o ciclo dele, dessa coisa do Corisco, que roda, roda, roda, para o bem e para o mal, para a vingança e para o amor”. Se você me perguntasse se eu esperava que o filme teria essa repercussão, eu estaria mentindo para você se eu dissesse que tinha certeza absoluta, que o filme seria o que foi. Não é verdade. Primeiro, era uma experiência. Eu não sabia como bateria na tela grande aquela coisa de rodar, aquela loucura daquele personagem que fala baixo, lento e tem muita agilidade. Tem uma coisa de quem tem o poder que eu acho extraordinária. Quem tem o poder não precisa gritar, entendeu? Ele fala com a convicção de que ele é poderoso, ele não precisa gritar para dizer: “Eu sou poderoso!”. No momento que você começa a gritar: “Eu sou poderoso”, é porque você já não é tão poderoso, você já perdeu o poder, você precisa usar da violência. Não, ele era sempre sereno, tinha uma convicção. Deus e o Diabo foi isso, foi a história de uma experiência cinematográfica. O filme, se for visto com atenção, é dividido em dois. Do início até a entrada do Corisco, o filme tem uma linguagem, ele é todo stanislavskianamente bem feito, os atores falam, andam e interpretam de uma maneira. Depois, quando entra o Corisco, ele traz uma outra dimensão, uma outra visão de cinema. Até hoje é uma experiência que eu guardo. 40, 50 anos depois sempre fico satisfeito de ter feito esse filme. Fico orgulhoso de ter feito O Deus e o Diabo e ter sido uma experiência bem realizada e aceita. Até hoje as pessoas quando veem Deus e o Diabo ainda falam: “É um filme tão moderno, esse filme parece que foi feito hoje”. É um filme, realmente, que tudo, sabe quando tudo entrosa? Deu tudo certo no filme, apesar de ter sido um filme paupérrimo (risos). Cinco pessoas trabalhando, fazendo luz, fazendo tudo. Todo mundo ajudava a fazer tudo, e o Glauber teve duas pessoas maravilhosas trabalhando junto com ele, que eram o Paulo Gil Soares e o Walter Lima (Jr.). Quando o Glauber entrou dizendo: “Olha, a partir de agora o filme vai ser mudado”, todo mundo ficou espantadíssimo, “Mudado como?”. Foi então que o Glauber explicou a situação e imediatamente tanto o Walter, como o Paulo Gil embarcaram na experiência. Isso que foi legal, não teve: “Não, não faça isso, isso é loucura”. Aquele fogo da juventude, só a juventude tem isso, não tem a hesitação, tem a ousadia.

• O Paulo Honório, do filme São Bernardo, é uma das maiores atuações da história do cinema brasileiro. Existe um nível de precisão, contenção e lirismo muito difícil de ser atingido nesse personagem. A própria adaptação do livro de Graciliano Ramos era arriscada e complexa. No entanto, o filme do Leon Hirszman consegue se coadunar ao romance, assim como você consegue se fundir ao personagem do livro. O trabalho de construção do personagem foi muito laborioso? Como se deu esse processo com o Leon?
Cena do filme São BernardoO Leon tinha um método de trabalho muito legal. Ele reunia o elenco à noite, depois do jantar, e nós fazíamos a leitura da cena do dia seguinte, com os atores reunidos. Discutíamos a cena, como seria feita, e o Leon passava a visão dele de como o filme se realizaria, em cada sequência. Isso foi fantástico, porque nos estávamos entranhados dentro do próprio livro, São Bernardo. Agora, quanto ao Paulo Honório, quando eu li o livro eu liguei para o Leon, e lhe disse: “Leon, eu não sei se vou poder fazer esse filme”. Pelo seguinte, você abre na primeira página e o Graciliano te descreve um cara que tem um tanto de altura, cabelos ruivos, meio sarará, lábios grossos, mãos enormes. Eu disse: “Não sou eu, pô!”. Porque uma coisa é você fazer um filme cujo roteiro seja de criação do diretor, ninguém sabe como era essa história, como foi criada. O público vai ver o filme através das ações dos atores, o público vai conhecer os personagens através da interpretação dos atores. Uma adaptação de um romance é mais complicada porque o cara imagina. Todas as mulheres que leram Dom Casmurro imaginam a Capitu na cabeça delas, como seria a Capitu. Pode não ser a mesma Capitu, por exemplo, que o Paulo Cesar Saraceni imaginou. Ele imaginou uma Capitu, mas que talvez não seja a Capitu imaginada por milhões de pessoas que leram o romance, e é por isso que é difícil. É muito difícil você interpretar um personagem que as pessoas já leram e conhecem, já entenderam, já viajaram no livro, com quem já têm intimidade: “Oi, tudo bem? Eu sou Paulo Honório, etc. e tal”. Então para você criar um personagem desses, você tem que ter um apoio, um alicerce muito grande da conversa com o diretor. O diretor é que vai te dar tudo isso, você traz e discute com ele. E o Leon era um relógio, era preciso, tudo dele era muito bem trabalhado, muito bem cuidado, era fantasticamente bem feito. O Leon me disse assim: “Não, não se preocupe. Não quero saber do personagem como está, eu quero saber o que você pode me dar do personagem. Eu quero que você me diga politicamente como você pensa, como você fala através do teu personagem, e isso você vai me dizendo à proporção que nós vamos discutindo, vamos acordando. Jogaremos Freud na mesa, Jung e não sei mas o quê. A gente vai discutindo, como é que você vê, como está dentro de você, vamos conversar e estudar”. E foi assim que eu tive a coragem de fazer o São Bernardo, que para mim é o grande filme que eu fiz. O Deus e o Diabo é a grande experiência cinematográfica da qual eu participei, indiscutivelmente. A ousadia de uma época, de um grupo jovem fazendo um filme. A história do Corisco foi criada pelo Glauber, a história é outra coisa. Já Leon criou esse personagem dentro do livro e ele foi amarrando o filme através do próprio livro. Ele criou, mas sempre dentro daquele universo, do que poderia ser feito. Ele não abriu demais, queria dar a dimensão do autor. Isso que é bonito. O filme tem outras camadas, você tem a história do filme, você tem politicamente o que poderia acontecer na época, como o Brasil vivia, qual a situação daquele homem, que do nada se tornou um senhor de engenho, um senhor fantástico. Para mim, esse foi o filme que eu mais trabalhei no sentido de personagem, de criação mesmo. Como ator esse é um filme que eu olho e fico contente. Como fico contente com vários outros. O meu quarteto, que eu chamo quarteto de Alexandria, tem: Deus e o Diabo, São Bernardo, Os Deuses e os Mortos e Os Sermões. Se eu não tivesse mais feito cinema eu estaria satisfeito.

• Outro filme importante na sua filmografia é Capitu, de Paulo Cesar Saraceni. Uma adaptação para as telas do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nesse filme você faz o Bentinho, obcecado pela suposta traição de sua mulher, Capitu, com seu melhor amigo, Escobar. Enquanto vivenciava o Bentinho você acreditava no ponto de vista dele? Em algum momento você chegou a questionar a sanidade do personagem?
Cena do filme CapituOlha, Capitu foi um processo lindo. Eu vinha de O Deus e o Diabo quatro anos antes e as pessoas achavam que eu não aceitaria fazer nada. Porque eu recusava tudo, as pessoas ligavam para o Glauber, ele parecia que era meu agente: “Glauber, você não quer falar com o Othon para ele fazer o meu filme?”. E o Glauber dizia: “Eu não sou agente do Othon, liga para ele (risos). Não sou eu que vou resolver, faz esse filme, não faz esse”. Quando aconteceu o Capitu, o Glauber estava na produção do filme e veio falar comigo: “Vem, faz esse filme, vamos fazer, vamos fazer, o Paulo quer você”. Mas acho que não era eu quem ia fazer. Aliás, tem uma coincidência muito grande, porque muitos filmes que eu fiz na vida não era eu quem ia fazer, era outro ator. Eu acho que o destino brincou muito comigo: “Calma, o cara vai fazer. Calma ele não vai fazer mais, é você quem vai fazer”. Sabe, o destino fez isso comigo. Para fazer o Bentinho eu tinha que ter a convicção do Bentinho, senão eu não fazia o filme. Eu não podia ter dúvidas, eu tinha certeza absoluta que aquela mulher me traiu. Se eu ficasse (gestos de dúvida com o rosto), eu não ia fazer. É por isso que eu sinto o choque no momento em que eu vejo o Escobar saindo da minha casa à noite. Tudo muda na minha cabeça. Ele mesmo diz assim: “Ela chora pelo Escobar mais do que a própria viúva”, entende? Mesmo que não fosse verdade o que ele estava vendo, na cabeça dele, era verdade. As pessoas podiam olhar e achar que o menino era parecido com ele, mas ele achava que o menino era parecido com o Escobar, você tá entendendo? E ele passou a desconfiar da Capitu. Não adianta, quando há o reverso, você não consegue dormir sem parar de pensar na pessoa, você ama desesperadamente desde a infância. Não é como hoje: “Fiquei com a Capitu na rua”. O Bentinho não diz: “Fiquei com a Capitu, estive com a Capitu”, não tinha isso. (risos). Para conseguir pegar a mão, dar um beijo, era uma loucura para conseguir isso, tinha que ter a família inteira. Eu tenho um amigo que diz que quando ele namorava, para ele beijar a namorada, ele beijava a família inteira antes, beijava o pai, beijava a mãe, para depois chegar na namorada (risos). Porque ele não podia ir direto na namorada. Se fizesse assim o pai fazia um escândalo. Então esse homem era obcecado. Ele vai ao teatro ver o Otelo e ele se sente o Otelo, com ciúmes, entende? Esse cara realmente… Ele tava em outra dimensão. Esse cara não podia deixar de ter isso. Ele não podia acreditar que o Escobar fosse capaz de fazer qualquer coisa com a mulher dele, enfim: “Ela chora mais que a viúva”. Isso é fantástico, é uma frase rodriguiana, né? “Ela chora mais que ...”, (risos) e se eu puser isso num personagem do Nelson Rodrigues, é aceitável. “Ela chora mais do que a viúva”, ela, minha mulher, chora mais que a viúva, isso é fantástico, né? Esse personagem também me fascinou, porque eu vinha de rodopios e Brecht, distanciamento, e fui lá dentro, no âmago do personagem, fui buscar o Bentinho, naquela coisa do olhar. Daí eu disse: “Bom, agora eu já cumpri minha missão, não faço mesmo cangaceiro e agora o que vier eu traço”. Foi quando eu fiz O Dragão da Maldade.

• No filme, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, aconteceu o seu segundo encontro com o Glauber Rocha. Como foi voltar a trabalhar com um diretor, especialmente com o Glauber? Você tinha alguma ciência de como seria esse filme pronto, nas telas de cinema? O trabalho de direção de atores do Glauber era diferente do trabalho dos demais diretores com os quais você já trabalhou?
Foto da gravação do filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.O Glauber tinha um método diferente, ele era aquele que fica por trás da câmera incentivando você: “Vai para direita, agora levanta, corre, senta, anda”. E você: “Ahan, ahan” (onomatopeia de cansado). A coisa ia esquentando e você ia. Eu me lembro da cena com o Mário Gusmão, que eu estou em cima do Gusmão batendo (faz o gesto de quem está batendo). Eu faço o professor revoltado, para que o negro não fosse escravo, não se deixasse dominar pelo Coronel, tivesse liberdade. Então fica todo mundo desesperado, porque eu começo a agredi-lo, para ele reagir e ter depois a mesma reação com o Coronel. E o Glauber ficava por trás da câmera aos berros: “Mata este negro! Acaba com ele! Vai, bate, Othon, não tem pena, bate!”. E era assim: “Pá, pá!” (bate na mão). E coitado do Gusmão... Era só aqui (mostra o pescoço) no cangote dele: “Mata, mata, eu quero ver sangue nessa disgrama” (risos). Quando acabou a cena: “Mário Gusmão, meu amor, eu não tenho nada contra você, é a cena. Mário, machucou? Daqui água, por favor, cuida do Mário, por favor”. O Glauber era assim, entendeu? Na mesma hora que ele tava: “Pelo amor de Deus, vê aí álcool, qualquer coisa, machucou? Não é nada contra você, Mário, o ator Mário, eu quero que a raça negra se revolte, é isso que eu quero”. E aí a gente morria de rir depois. E o Glauber para mim sempre foi assim, tem pessoas que detestam, tem diretores que acham que o Glauber não sabe uma posição de câmera. Outros dizem que Glauber não sabe dirigir ator, as pessoas não entendem. Ele não me dirigiu em Deus e o Diabo, ele disse “faça o que você tiver vontade de fazer, e eu vou direcionando você”. Eu não posso chegar para você: “Faça isso!”. Aí eu estou impondo uma personalidade. O grande problema do diretor é a personalidade, ele quer impor no ator a personalidade dele, como ele faria o papel, aí não dá, né? Outro diretor maravilhoso é o Ruy Guerra. Você improvisa a cena e ele trabalha em cima da cena que você improvisou. E isso aí é o trabalho do diretor, por isso que eu acho maravilhoso Os Deuses e o Mortos.

• Você ganhou dois Candangos de melhor ator no Festival de Brasília com os filmes Os Deuses e os Mortos, Ruy Guerra, 1970 e Os Sermões, Júlio Bressane, 1989, além do Kikito, no Festival de Gramado, com São Bernardo, Leon Hirszman, 1971, entre muitos outros prêmios importantes, não só no cinema. Em que medida os prêmios estimulam a carreira de um ator? O prêmio pode ter um efeito contrário também, de impedir que um ator continue se desenvolvendo por achar que já tem reconhecimento suficiente?
Eu acho que prêmio atrapalha muito a carreira do ator. Eu acho que o prêmio não devia nem existir, para que prêmio? Eu não faço filme para ganhar prêmio, eu faço filme porque eu quero fazer o filme, porque eu adoro fazer filme. Às vezes prêmio me lembra jóquei, você tá correndo para ganhar os 4 mil metros, para ganhar um prêmio. Eu não quero. Quando eu faço, eu faço por amor, eu faço por que eu quero fazer, porque eu gosto de trabalhar, eu não sei ficar parado. Fiquei muito tempo parado em cinema, eu fiquei anos sem fazer cinema, porque as pessoas não me chamavam mais. Achavam que eu só queria fazer protagonista, seriam incapazes de me chamar para fazer uma participação num filme. E só depois que algumas pessoas começaram a me chamar, eu comecei a aceitar e aí foram me chamando de novo. Você vê que grande parte da minha filmografia são participações. Em Os Deuses e os Mortos também não era eu quem ia fazer o filme. Quem ia fazer era Walmor Chagas. Eu estava em casa sentado, lendo o jornal e vi que o Walmor tava fazendo Hamlet. Eu fui ver no teatro. Depois da peça fui falar com o Walmor e ele me disse: “Eu vou trabalhar com o Ruy Guerra”. Eu falei: “Vai? Que maravilha! Um abraço nele!”. Depois tô em casa e leio o jornal que diz assim: “Walmor Chagas não vai poder fazer o espetáculo por hepatite”. Eu pensei: “Meu Deus, Walmor Chagas pegou hepatite, e agora? Com toda a produção já indo para Ilhéus?”. Enquanto eu estava em casa lendo e pensando sobre isso toca a campainha. Eu abro a porta e é o Paulo José desmantelado, coitado: “Pelo amor de Deus, o Ruy mandou que eu viesse aqui atrás de você, para você ir fazer Os Deuses e os Mortos, o Walmor ficou de ...”. Eu disse: “Acabei de ler. Coitado, pô!”. Eu tive que falar pra ele: “Eu não posso, eu estou acabando de fazer uma novela na Tupi”, chamava-se Super Plá. “Eu não Othon Bastos em gravaçãoposso, eu faço o diretor da agência de publicidade da Super Plá”. O Paulo José então me disse assim: “Vamos lá, quem é o autor?”. Eu falei que era o Bráulio Pedroso. “Uh! O Bráulio é de teatro, o Bráulio é de cinema, vamos lá falar com ele!”. Eu cheguei para o Bráulio e ele me disse assim: “O Ruy chamou você para fazer um filme?”. “É, o Ruy me chamou“. “E quem impende você de ir?”. “Eu tô na tua novela, né? Eu faço o presidente, o dono da empresa de publicidade que tá lançando o Super Plá”. Aí ele me disse: “Então, vais para os Estados Unidos num congresso”. (risos) “Um congresso em publicidade, você vai para lá, fica lá o tempo que você quiser fazendo filme. Quando você voltar, você volta para a agência de publicidade”. O Bráulio me deu licença. Foi quando fui pra Ilhéus fazer Os Deuses e os Mortos. O meu personagem tem uma cicatriz, uma ferida aqui no rosto, desse lado todo (passa mão do lado direito), é uma ferida enorme. Se eu fosse filmar às seis horas da manhã, eu acordava às três para a maquiadora fazer a maquiagem toda. A maquiagem fedia que era uma loucura, tinha uma coisa que ela colocava que fedia muito. E eu tinha que ficar com aquilo, tinha que ficar o dia inteiro com aquilo, e o Ruy tinha aquela mania de pegar lama e ficar colocando por cima da ferida. Porra, ele tinha essa mania: “Othon, está limpo tem que sujar mais”. No meio do filme eu tive que mandar dinheiro para minha mulher, a atriz Martha Overbeck, minha ótima atriz Martha. Eu estava lá em Ilhéus, botei uma bermuda, uma camisa por fora da bermuda, um chapéu de palha e fui para o banco com aquela (risos) ferida enorme. Porra, era um troço hediondo aquela ferida. Eu cheguei no caixa do banco, cheguei de chapéu, cabisbaixo, virei para mocinha e disse assim: “Por favor, eu queria mandar um dinheiro para São Paulo”. Ela: “Pois não, para quem?”. “Martha Overbeck, rua tal, valor tanto”. “Está com o dinheiro aí?”. “Estou”. Eu peguei e quando entreguei, levantei o rosto, a mulher olhou: “Ah! Ah! (barulho de susto)” (risos). Eu disse: “Calma, calma”. “Que susto que o senhor me deu, meu Deus do céu, quando eu olhei essa coisa”. “Você não vai ficar com nojo de pegar o dinheiro, porque eu estou com essa ferida, isso tudo aqui é fantasia”. O gerente do banco veio rindo e perguntei: “O dinheiro vai chegar?”. Ele: “Vai chegar”. “Se não chegar eu volto de novo aqui” (risos). E outra foi a Norma Bengell, ela não sabia que o meu personagem tinha essa ferida e eu tinha uma cena de amor com ela, em cima do cacau, da semente de cacau. Uma cena linda, shakespeariana. Eu quero que ela me mate. Pego o punhal e encosto aqui (faz um gesto como se tivesse um punhal no pescoço). Uma coisa meio Ricardo III, aquela coisa do me mate e tal. Bom, ensaiamos e na hora de filmar eu tô com aquela ferida, o Ruy sujando de lama aquela porra. Quando acontece a cena, quando eu vou beijá-la, puta, ela não aguenta, ela quase vomita de nojo e do cheiro daquela coisa. Quando cortou, a Norma xingou o Ruy, me xingou. Mas vendo o filme era um negócio. Tinha uma pelezinha que saía, era uma loucura. A moça da maquiagem (Nena) deve ser citada, porque o trabalho que ela fez foi primoroso. Ela já era uma maquiadora de cinema. Então Os Deuses e os Mortos, foi outro filme todo, todo, todo, improvisado no sentido da interpretação. O Ruy improvisava muito, ele era fantástico. O Leon era um que ensaiava quatro, cinco horas para fazer de um take só. Não tinha dinheiro para fazer o segundo take, entendeu? Tinha que ser de primeira, porque não podia, não tinha dinheiro, era muito caro filmar na época. E o Ruy também, ensaiava, ensaiava, ensaiava, depois ele chamava o Dib. Foi com esse filme que o Dib estourou, foi para a Alemanha, ficou não sei quanto tempo na Alemanha, porque os alemães não acreditavam no que ele tinha feito sem grua, sem tripé, não tinha nada disso, era câmera na mão mesmo, segura e firme. O Ruy perguntava: “Dib, queres ver o ensaio?” (imita o sotaque moçambicano do Ruy Guerra). O Dib: “Pois não, por favor,”. A partir daí já passava a ser a marcação da cena. O Dib ficava vendo, olhando para as telhas, para fazer os focos de luz. O Ruy falava: “Tu estás a olhar?”. “Tô vendo, não se preocupe não”. Era impressionante quando ele colocava aquela câmera aqui (gesto de câmera no ombro). Era um gênio, é um gênio. Ele fazia o seguinte: esse olho aqui na câmera (gesto de câmera no olho direito, pousada no ombro) e com esse olho aqui (olho esquerdo) ficava vendo o que estava acontecendo. Ele não fecha esse aqui (esquerdo) para ficar só nesse aqui, não (direito, o da câmera). Tinha uma cena, que o Nelson Xavier abria a janela e eu fechava a janela para encurralá-lo. Em determinada hora o Xavier caiu, escorregou. Era para parar a cena na hora que ele escorregou, mas o Dib desceu com a câmera, levantou junto com o Xavier e tudo continuou normalmente. Você tinha a impressão que ele não estava prestando atenção, mas ele sabia tudo, esse cara é um gênio. Aconteceu uma coisa muito engraçada no início do filme: eu venho andando, o Milton Nascimento atira e eu caio. Bom, quando fomos filmar o Ruy falou assim (voz imitando a do Ruy): “Ô Dib, tu ficas aqui com o tripé, não tem mistério a cena, o Othon vem andando, você vem com ele e em determinado momento você vai ouvir a voz do Milton, a câmera vai para o Milton, o Milton fala, o outro menino fala e depois você volta para o Othon, porque ele vai receber um tiro. Trás o tripé para o Dib”. O Ruy falou para o Ronaldo, que era o assistente do Dib. O Dib na mesma hora falou para o assistente: “Ronaldo, não trás o tripé não, eu vou fazer com a câmera na mão”. E o Ruy disse: “Você vai fazer com a câmera na mão? Uma cena pequena dessa, dele vir andando e você faz com a câmera na mão? Por que é que você não faz no tripé?”. O Dib falou: “Porque o tripé treme e eu não vou tremer, o tripé treme e eu não”. Ele não é fantástico? É um gênio. Vai, o que mais.

• Qual é a diferença entre interpretar um personagem baseado numa figura histórica, como o presidente Floriano Peixoto, em Policarpo Quaresma, Padre Antônio Vieira, em Os Sermões e Visconde de Feitosa, em Mauá, o Imperador e o Rei, e interpretar um personagem original? Você se sente mais "livre" para criar?
Othon Bastos como o Padre Antônio Vieira no filme Policarpo Quaresma, erguendo e abrindo os braços numa cena marcante.O que eu digo para você é o seguinte, eu não sou autor de roteiro, não sou roteirista, mas você tem que dar a verdade histórica. Quando você faz uma adaptação, você pode criar, inventar, mas tem coisas que você não pode fazer. Você não pode mudar o Floriano Peixoto, você não pode mudar o Barão de Mauá. Você pode criar talvez em torno disso. Sei lá, alguma coisa íntima do Barão, algum romance. A gente sabe que ele teve um entrevero com o Dom Pedro II, então você pode criar um diálogo que não tenha sido o verdadeiro — porque não tinha gravador na época — ninguém sabe o que um disse para o outro. Por exemplo, no Mauá, o personagem que eu faço é uma síntese de vários personagens num só. Você pode reparar que ninguém, nenhum grande crítico nacional, esses gênios da crítica, ninguém comentou isso. Se você me pegar da primeira à última cena eu sou exatamente igual. Cabelo branco, comprido, é exatamente o mesmo personagem, como ele mesmo diz: “O poder não envelhece, o poder não muda, o poder é o mesmo.” Quando você vai fazer um filme histórico, você tem que ler sobre a história. O que é que o cara fazia, como ele era, como ele agia. Aí você traz esse personagem para você, começa a criar dentro da personalidade do Floriano Peixoto, do Padre Antônio Vieira. A verdade é a seguinte, quando você faz um filme histórico, mas que não é a vida de um cara, você faz um episódio dentro do filme. Portanto você tem que ver como ele agiria naquele período, qual era o pensamento dele, qual seria a reação dele, se era reacionário, não reacionário, você vai humanizando o personagem. Começa a imaginar, pega o livro, as biografias sobre o cara, para saber como ele era desde criança. Você estuda mesmo para mudar só dentro do possível, não ficar tão fora da realidade. Já o Padre Antônio Vieira o que era realmente difícil era o texto. Era preciso uma pessoa profundamente conhecedora do texto. Porque eu não poderia dizer sandices do Padre Antônio Vieira. Tem uma coisa muito engraçada nos Sermões. Meu filho ia sempre comigo para ver as filmagens. Ele não é ator, é designer. Ele sempre diz pra mim: “Ator é louco, não pode ir à praia, não pode se queimar, não tem fim de semana, não tem nada, não pode ter ruga. Imagina se eu vou ficar fazendo essas coisas.” Quando ele se formou em Design, olhou para mim e disse: “A única coisa, realmente, com que eu posso colaborar com você e com a minha mãe é fazer o book, mais nada (risos). Não quero nem saber, esse negócio de atuar não leva a lugar nenhum. Sábado e domingo trabalho, segunda-feira é dia de folga, não dá não, não pode”. Ele fica falando essas coisas para mim brincando. O Julinho Bressane, que é outro desvairado, esse é inteligentíssimo, preparadíssimo, cultíssimo, olhou para o meu filho e disse: “Pô, eu tô procurando o Viera menino, e o que é que esse menino tá fazendo aqui, meu Deus?”. Eu falei: “Ô, Julinho, esse menino é meu filho”. O Julio emendou: “Então não tem outro, o Vieira vai ser ele”. E colocou o Pedro, meu filho, para fazer o Viera quando ele dá o estalo de Vieira, que é quando seu professor dá uma reguada na cabeça dele. O Julio disse para o meu filho: “Olha, eu pago, hein? Vou te pagar, vou dar cachê para você fazer o papel. Não é porque é filho do Othon que vai entrar de graça não, eu vou pagar.” Eu e Martha, minha mulher, ficávamos horas com ele: “Vai, não, tá canastrão, não declama. Fala, não declama”. No dia o Pedro chegou lá e fez numa boa. O Julinho ficou abismado, ficou apaixonado e na dublagem também. O Julinho disse assim pra ele: “Fica vendo quantas vezes você quiser”. “Tá bom, tá bom”. “Tá bom?”. “Tá”. “Pode ir?”. “Pode”. E o Pedro começou a dublar e quando terminou o Julinho disse: “Eu não acredito, foi de primeira?”. Eu disse: “Foi, Julinho, qual é o problema?”. O Antônio Abujamra estava sentado vendo e perguntou para o Julinho se o Pedro tinha feito de primeira. Julinho: “Fez”. “O outro ator levou horas fazendo aqui, e esse menino chegou e fez de primeira?”. “Fez de primeira”. “Mas esse menino é filho de quem?”. “Do Othon Bastos”. E o Abujamra falou: “Eu tenho que aturar o pai, agora eu vou ter que aturar o filho também” (risos).

• Em Central do Brasil, você faz um caminhoneiro, o César, um homem solitário, com dificuldade de demonstrar afeto. E é justamente por conta dessa dificuldade que nasce uma das sequências mais bonitas e tristes do filme, quando o César sai de caminhão, abandonando a Dora numa parada de ônibus. Quando você estava filmando essa sequência, você tinha ideia do filmagem, quando uma sequência vai dar certo nas telas?
Othon dentro do caminhão, dirigindo, no filme Central do Brasil.Esse caminhoneiro... Só tem uma coisinha que eu preciso falar primeiro. Quando eles me chamaram para fazer o filme, disseram: “O personagem é um caminhoneiro, você dirige?”. Eu disse: “Não tem problema, eu dirijo, eu já estou dirigindo, eu já sei dirigir, não tem o menor problema. É só chegar lá uma semana, ou cinco dias antes e pegar o caminhão, dar umas voltas”. Aí tudo bem, eu cheguei, o caminhão era deslumbrante, era um caminhão lindo, maravilhoso, hidramático, nem era hidramático, mas era de tal maneira que você tinha uma facilidade. Era um caminhão fantástico. E eu treinei com esse caminhão, ia para estrada, andava, voltava para estrada. Quando chegou o Waltinho (Walter Salles), ele disse: “Este caminhão, vocês estão loucos? Esse caminhão é moderníssimo, não pode ser esse, tem que arranjar um caminhão mais velho, um caminhão que a gente sinta que é um caminhão difícil”. Então me trouxeram um caminhão que tinha folga na direção. Eu tive que dizer: “Waltinho, você quer me matar?”. “Não, tá bem, não tem problema, vai fazendo”. É um gentleman, o Waltinho é um gentleman, cuida de você com um carinho, ele é uma pessoa muito legal. “Não, Othon, não se preocupe, não. Vai treinando, se você não sentir segurança a gente aperta de um lado, aperta de outro”. Mas sobre a cena, que você me perguntou te digo que a gente sente pela emoção do momento da filmagem, porque ali é o grande momento mesmo. Com a Fernanda era ótimo, porque a gente conversava e falava o que sentia: “Senti assim, temos que passar isso”. O César é toda uma bondade, uma amizade, e a Dora é uma mulher solitária, que tem a esperança de ter alguém na vida dela. O César não tem isso, ele tá querendo fazer aquilo por bondade, pelo menino. O que ele fez ali, faz com outras pessoas também, ele tem isso nele, ele não quer o compromisso com alguém. E a cena, depois que foi feita, a gente sabia que teria um impacto grande, porque realmente tem. Você não espera que ele vá embora, você acha que vai estar ali esperando por ela. Mas, se você reparar, na hora que a Dora oferece a cerveja, ele não quer beber e ela diz: “Beba, beba.” Ela pega na mão dele e você sente que não é aquilo, que os vetores eram outros. Você perceber um constrangimento dele em beber, uma coisa que ele não está acostumado.

• Quando você foi convidado pela Laís Bodanzky para fazer o seu Wilson, de Bicho de Sete Cabeças, ficou com medo de criar um pai reacionário demais, uma espécie de vilão maniqueísta? Você fez algum tipo de laboratório para construir o personagem?
Othon em O Bicho de Sete CabeçasA Laís é uma diretora exigente, minuciosa. Ela tem muito cuidado com as coisas que faz para não sair do caminho que ela quer. Mas, ao mesmo tempo, era maleável, porque você podia dar opinião também: “Você não acha isso?”. Em determinados casos ela era persistente e dizia: “Não, eu quero assim”. Eu fui o primeiro ator com quem a Laís falou do Bicho de Sete Cabeças: “Eu tô fazendo um filme, eu queria que você trabalhasse nesse filme, fizesse o pai”. E ela começou a mandar os roteiros: “Olha, estou mandando o primeiro, mandando o terceiro, nono, décimo”. Eu fui uma das primeiras pessoas a ler. Depois ela me disse: “Que tal o fulano para o papel?”. Eu dizia: “Ótimo!”. Então ela disse: “Eu quero o Rodrigo Santoro, porque ele fez muito bem aquele padre daquela minissérie, Hilda Furacão, eu senti que ele era humano, que tem um calor humano muito grande. Eu acho que vai fazer esse personagem muito bem.” Eu disse: “Eu não conheço o Rodrigo muito, quer dizer, vi a minissérie, o trabalho dele era muito bom, não conheço ele assim, intimamente”. Aí eu o conheci e nós começamos a trabalhar. Fizemos vários laboratórios e tivemos um preparador de elenco muito bom, o Sérgio Penna. Ele era maravilhoso. O Sérgio pegou a turma dos loucos mesmo, e colocou todo mundo dentro do trabalho desse processo. Por isso ele conseguiu trabalhos maravilhosos de todo o elenco... O bom do Sérgio é que ele assistia a um ensaio, por exemplo, aquela cena que eu descubro o brinco: “Que é isso na sua cara?”. Ele assistia ao ensaio, depois falava, dava uns toques, mas eram uns toques sempre muito conscienciosos, não era um toque de exibicionista: “Você tem que fazer assim!” Não, era uma coisa sempre muito humana: “O pai não faria assim, você não acha?“ Eu dizia: “Acho, é verdade, boa ideia”.

• Como foi o encontro com o Nelson Pereira dos Santos? Você trabalhou com vários diretores importantes para a história do cinema brasileiro: Glauber, Leon, Joaquim Pedro, mas só veio a atuar num filme do Nelson em 2006. Como surgiu esse convite?
Eu estava em casa e aí recebi um telefonema: “Othon?” (faz uma voz de moribundo). Eu perguntei: “Quem tá falando?”. “Nelson Pereira dos Santos”. “Ô, Nelsinho, querido, como é que você vai, tudo bem?” “É, caminhando, vamos indo!”. “Aconteceu alguma coisa?”. “Não, eu tô ligando para você, porque eu quero te convidar para fazer um filme, eu só estou convidando os amigos. Já convidei fulano, já convidei Otávio Augusto, colegas seus, amigos. Talvez seja o meu último filme e eu quero reunir nesse meu último filme os meus amigos”. “Porra, Nelsinho, você não precisa nem hesitar, claro que eu vou”. “É uma participação”. “Claro que eu vou”. “Você pode vir aqui amanhã, aí a gente conversa, vê o cachê. Como você sabe cinema brasileiro tem sempre dificuldades, é um cachê simbólico”. “Ô, Nelson, porra, para com isso, só em estar trabalhado com você de amizade, nem pensa em dinheiro, vamos lá.” “Você vem aqui amanhã, vem?”. “Vou sim.” Ele marcou comigo três e meia da tarde lá na Tijuca. Quando cheguei no estúdio, na Tijuca, falei assim: “Filme do Nelson?”. “Ah tá, lá naquela sala, sobe a escada, tá todo mundo lá”. Eu cheguei na sala e encontrei o Nelson animado: “Pô, foi uma loucura, num sei o que, câmera vem pá, chega na primeira cena...” Eu digo: “Nelson, ontem você tava falando comigo daquela maneira, como se tivesse morrendo e hoje eu chego aqui e encontro você eufórico, o que é isso?” “Ah, porque se eu convidasse você na euforia, você talvez não aceitasse, então eu tive que fazer aquele drama todo para você vir fazer o filme”. Foi um ótimo trabalho. O Nelson é um tremendo diretor. No dia que ele assumiu a Academia Brasileira de Letras, todos nós fomos. Eu cheguei para ele e disse assim: “Nelson, a partir de hoje não adianta você fazer nenhum tipo de cinema mais avançado”. Ele perguntou: “Por quê?”. “Porque você agora é acadêmico, (risos) todo o filme teu será acadêmico”.

• Além de você ser um dos maiores atores do cinema brasileiro, a sua voz é uma das mais conhecidas não só no cinema, mas em narrações de filmes comerciais, institucionais e audiovisuais diversos. Como é interpretar somente com a voz?
Uma das coisas que eu mais gosto de fazer é narrar, então quando me pedem para narrar eu aceito porque adoro. Acabei de fazer um trabalho enorme sobre um artista plástico de Pernambuco, umas 20, 25 laudas de texto. Uma coisa enorme. Eu faço o alter ego dele, ele conversa comigo, eu esculacho com ele, brigo. Eu faço muitos trabalhos de narração porque tenho muito prazer nisso. Fiz um trabalho para faculdade de Brasília sobre literatura de cordel, que era maravilhoso também, toda narração entrecortada com os cordelistas e os cantadores de cordel, dando exemplos. Outro que fiz foi o Risco. O filme é sobre um rapaz que passa o dia inteiro com uma pedra na mão riscando os muros, ele vai riscando, ele anda de um lado, anda de outro, depois ele volta. Eu fiz a narração dessa história impressionante, um jovem que fica andando, ninguém sabe a razão, nunca chegou a conversar com ninguém. Agora os comerciantes locais dão comida para ele, dão café. Ele faz muito isso no cemitério São João Batista, no Parque Lage. Ele risca e vai, aí ele volta de novo. Não ataca ninguém, não ofende ninguém, só fica fazendo isso. Quando eu faço uma narração de algo eu peço para não ver o que eu vou narrar, entendeu? Então eu leio o roteiro e imagino como eu narraria aquilo. Eu não sei como são as imagens, eu só sei que tal trecho tem que ter 20 segundos, 30 segundos. Eu peço sempre para não ver, porque às vezes pode mudar a minha ótica. Porque o bom é você contar como se você tivesse contando um fato. Eu sei que eu sempre quero contar, como se eu tivesse contando uma história. Você narra para despertar na pessoa um interesse, uma curiosidade. Tem pessoas que narram maravilhosamente bem, né? O Paulo José é um narrador brilhante. O que fazemos é uma interpretação, não é uma vivência, é uma interpretação do que você está vendo, uma interpretação quase pessoal. Acabou?

Filmografia

1 Nosso Lar (2010), Wagner Assis
2 Quincas Berro d’Água (2010), Sérgio Machado
3 Orquestra dos Meninos (2008), Paulo Thiago
4 O Engenho de Zé Lins (2007), Wladimir Carvalho (narração)
5 O Passageiro — Segredos de Adulto (2006), Flávio R. Tambellini
6 Zuzu Angel (2006), Sérgio Rezende
7 Brasília 18% (2006), Nelson Pereira dos Santos
8 O Coronel e o Lobisomem (2005), Maurício Farias
9 Cascalho (2004), Tuna Espinheira
10 Irmãos de Fé (2004), Moacyr Góes
11 Glauber, o Filme — Labirinto do Brasil (2003), Silvio Tendler
12 Poeta de Sete Faces (2002), Paulo Thiago
13 Barra 68 — Sem Perder a Ternura (2001), Wladimir Carvalho (narração)
14 Abril Despedaçado (2001), Walter Salles
15 Bicho de Sete Cabeças (2001), Laís Bodanzky
16 3 Histórias da Bahia (2001), Edyala Yglesias, José Araripe Jr. e Sérgio Machado
17 Condenado à Liberdade (2001), Emiliano Ribeiro
18 Villa-Lobos — Uma Vida de Paixão (2000), Zelito Viana
19 A Hora Marcada (2000), Marcelo Taranto
20 A Terceira Morte de Joaquim Bolívar (2000), Flávio Cândido
21 Mauá — O Imperador e o Rei (1999), Sérgio Resende
22 Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1998), Paulo Thiago
23 Central do Brasil (1998), Walter Salles
24 O Cangaceiro (1997), Anibal Massaini Neto
25 O que é Isso, Companheiro? (1997), Bruno Barreto
26 A Grande Noitada (1997), Denoy de Oliveira
27 Sombras de Julho (1995), Marco Altberg
28 Menino Maluquinho — O Filme (1994), Helvécio Ratton
29 Conterrâneos Velhos de Guerra (1991), Wladimir Carvalho (narração)
30 Sermões — A História de Antônio Vieira (1989), Júlio Bressane
31 Mistério no Colégio Brasil (1988), José Frazão
32 Chico Rei (1985), Walter Lima Jr.
33 A Próxima Vítima (1983), João Batista de Andrade
34 Das Tripas Coração (1982), Ana Carolina Teixeira Soares
35 Ao Sul do Meu Corpo (1982), Paulo Cesar Saraceni
36 O Homem do Pau-Brasil (1982), Joaquim Pedro de Andrade
37 Linha de Montagem (1982), Renato Tapajós (narração)
38 Os Anos JK — Uma Trajetória Política (1980), Silvio Tendler (narração)
39 Fogo Morto (1976), Marcos Farias
40 O Predileto (1975), Roberto Palmari
41 Triste Trópico (1974), Arthur Omar (narração)
42 Longo Caminho da Morte (1972), Júlio Calasso Jr. (narração)
43 Herança do Nordeste (1972), Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno e Sérgio Muniz (narração)
44 São Bernardo (1971), Leon Hirszman
45 Os Deuses e os Mortos (1970), Ruy Guerra
46 Tostão — A Fera de Ouro (1970), Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite (narração)
47 O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Glauber Rocha
48 Capitu (1968), Paulo César Saraceni
49 Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Glauber Rocha
50 Sol Sobre a Lama* (1963), Alex Viany
51 O Pagador de Promessas (1962), Anselmo Duarte

*Filmado em 1960, Sol Sobre a Lama foi o primeiro longa-metragem de ficção em que Othon Bastos trabalhou.

OTHON BASTOS, ATOR BRASILEIRO

Luís Alberto Rocha Melo

Foi quase por acaso que o teatro surgiu na vida do baiano sertanejo Othon José de Almeida Bastos. Em 1950, ainda adolescente, foi levado por um amigo a fazer um teste com Paschoal Carlos Magno, que havia recém-inaugurado o Teatro Duse, no Rio de Janeiro. O Duse foi sua verdadeira escola de teatro. É lá que Othon aprendeu “todos os segredos de um espetáculo”, da maquiagem à construção dos cenários1.

Ainda que a popularidade de Othon Bastos no cinema e na televisão seja inegável, o teatro é seu grande esteio, veículo de alguns dos mais importantes trabalhos que o ator desenvolveu dos anos 1950 até pelo menos meados dos anos 1980. Dos três meios de expressão, o cinema é o mais tardio. Mesmo a televisão veio antes (1957), ainda assim pelas mãos do teatro (Grande Teatro Tupi, de Sérgio Britto, e do Teatrinho Trol, de Fábio Sabag).2

Quando, em 1957, o cenógrafo e diretor pernambucano Eros Martim Gonçalves convidou Othon Bastos para trabalhar no Teatro da Universidade da Bahia, em Salvador, um novo capítulo se abriu na trajetória do ator. Em três anos, participou de oito montagens, interpretando textos de autores como Arthur Azevedo, August Strindberg e Antônio Callado. De 1957 a 1966, manteve-se ligado à vida cultural de Salvador, acompanhando e impulsionando alguns dos mais significativos momentos da cena teatral e cinematográfica da cidade, tais como a própria Escola de Teatro (1957-59), na qual conviveu com Otoniel Serra, Gianni Ratto, Geraldo Del Rey, Helena Ignez, Lina Bo Bardi, Walter Smetak, Koellreutter e Yanka Rudzka. Também fez parte da fundação da Sociedade Teatro dos Novos (1960) — liderada por João Augusto Azevedo, com Echio Reis, Sonia Robatto e Carlos Petrovich, grupo responsável pela construção do Teatro Vila-Velha — e do chamado “ciclo baiano” de cinema, do qual tomou parte interpretando papéis secundários em O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), Tocaia no asfalto (Roberto Pires, 1962) e Sol sobre a lama (Alex Viany, 1963).

Esse rico período em Salvador foi certamente decisivo para a sua posterior projeção nacional e internacional, quando interpretou o personagem Corisco em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964). O período em que o ator passou na Bahia também foi importante pela concretização da união com a atriz Martha Overbeck, com quem o ator se casou, formando uma produtiva parceria.3

Em 1971, no período mais sangrento da ditadura militar, Othon Bastos e Martha Overbeck fundam a Othon Bastos Produções Artísticas, sediada em São Paulo. A companhia durou até 1984, dissolvendo-se após a montagem de Dueto para dois, com texto do inglês Tom Kempinski e direção de Antônio Mercado. É uma data sintomática, pois marca também o fim dos “anos de chumbo” e o início da redemocratização, com a campanha pelas eleições livres.

As peças montadas por Othon e Martha Overbeck — entre elas, Castro Alves pede passagem (1971), com texto e direção de Gianfrancesco Guarnieri e músicas de Toquinho; Um grito parado no ar (1973), com texto de Guarnieri e direção de Fernando Peixoto; a premiada Caminho de volta (1974), de Consuelo de Castro, co-direção de Fernando Peixoto e Gianni Ratto; Ponto de partida (1976), com texto de Guarnieri, músicas de Sérgio Ricardo e, novamente, direção de Fernando Peixoto; Murro em ponta de faca (1978), com direção de Paulo José, cenografia e figurinos de Gianni Ratto e músicas de Chico Buarque; e Calabar: O elogio da traição (1980), de Chico Buarque e Ruy Guerra, realizada em parceria com o Teatro Vivo, de Renato Borghi, e direção de Fernando Peixoto — caracterizaram-se por uma clara postura de resistência ao regime militar e à censura. Ponto de partida, por exemplo, baseia-se no assassinato do jornalista Vladimir Herzog na prisão, ambientando a ação em uma hipotética Idade Média espanhola.

A trajetória de Othon Bastos se torna ainda mais rica se pensarmos nela não em separado, mas em consonância com seu trabalho no cinema, igualmente rico em significados políticos e afinado às experiências estéticas desenvolvidas por alguns realizadores, em particular aqueles ligados ao movimento do cinema novo.

Vale notar que a solidez da formação teatral de Othon Bastos conferiu ao seu trabalho no cinema um curioso contraponto à noção de “espontaneidade” do gesto documental cinemanovista (a câmera na mão). Esse contraste foi magistralmente explorado por Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol e também por Ruy Guerra em Os deuses e os mortos (1970), este último fotografado por Dib Lufti. Outros filmes, no entanto, tenderam ao estático, como se a câmera buscasse uma “disciplina” equivalente a do ator: certas passagens de Capitu (Paulo César Saraceni, 1968), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969), e sobretudo São Bernardo (Leon Hirszman, 1972).

Um rosto, um símbolo. Talvez Corisco tenha se tornado, de fato, uma espécie de marca registrada um tanto prejudicial para a carreira cinematográfica de Othon Bastos. Mas basta lembrar que, se em 1963 ele desempenhou o papel do “cangaceiro de duas cabeças”, cinco anos mais tarde viveu o dilacerado Professor de “O Dragão da Maldade...”, personagem que diverge muito do anterior. Diferente do que ocorre no expressionista Corisco, a progressão dramática do Professor se dá interiormente. Mesmo quando transbordam a dor, o ódio ou a angústia, existe sempre algo que nos escapa — mas que se fixa em algum ponto cego da sensibilidade do espectador, e que se transforma em referência. Ácido, individualista, irônico, alcoólatra, o Professor não é uma continuidade de Corisco, mas sim de Paulo Martins, o poeta de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967).

Um rosto, um símbolo? Sim, mas na medida em que serve a um comprometimento maior com o sentido político da arte. É o caso da participação de Othon Bastos em Libertários, curta-metragem de 1976 realizado em 16mm, em preto e branco, dirigido por Lauro Escorel Filho. O filme trata do movimento anarquista entre o operariado paulista na passagem do século XIX para o século XX, e apresenta imagens impressionantes dos trabalhadores nas fábricas. Othon Bastos é o narrador e, a certa altura, surge também em um primeiro plano estático, frontal, mudo, olhando para a objetiva, tal como em uma foto de identificação ou um retrato para a posteridade. Está caracterizado, de forma minimalista e muito eficiente, como um operário italiano anarquista: o bigode é o traço exterior mais marcante; o olhar — ao mesmo tempo para dentro e para fora, ao mesmo tempo de derrota e de desafio — cria o elo implícito entre o que se diz sobre a repressão de 1917 e a ditadura militar em vigor em 1976.

A expressão desse olhar curiosamente faz lembrar a de outro personagem fotografado pelo mesmo Lauro Escorel, personagem “oposto” ao desse operário anarquista: trata-se de Paulo Honório, o latifundiário de São Bernardo, de Leon Hirzsman. Em Libertários a própria imobilidade do operário o impede de curvar-se ou de abaixar a cabeça. É como se, para ele, a história ainda se mantivesse suspensa; momentaneamente derrotado, ainda resta olhar adiante. Ao contrário, em São Bernardo, o plano final de Paulo Honório — novamente um enquadramento frontal, explorando ao máximo as nuances no olhar que o ator empresta ao protagonista, enquanto o discurso interior se desenrola — culmina com um lento gesto de apagamento. O rosto se abaixa, o corpo se curva sobre a mesa e o personagem fixa a luz de uma vela que aos poucos se extingue.

Essa coerência ideológica que estabelece uma ponte entre personagens tão diversos — um cangaceiro, um intelectual, um operário, um latifundiário —, confere uma expressiva unidade ao trabalho de Othon Bastos no cinema, sobretudo nesse período entre 1964 e o início dos anos 1980. O ator foi marcado por essa performance política, a tal ponto que será difícil dissociar da sua própria figura um certo “peso” dramático pouco afeito a personagens ligeiros.

A sua participação em Libertários está longe de ser uma exceção. De 1969 a 1981, Othon Bastos narrou diversos filmes entre longas e curtas, incluindo três importantes marcos do documentarismo brasileiro dos anos da “abertura” militar: Braços cruzados, máquinas paradas (Sérgio Toledo e Roberto Gervitz, 1979), Os anos JK (Sílvio Tendler, 1980) e Linha de montagem (Renato Tapajós, 1981).4

Menos lembrada, no entanto, é sua participação em trabalhos dissociados do movimento cinemanovista, mas igualmente importantes em termos de significação cultural e experimentação estética. Pode-se citar filmes como O longo caminho da morte, desconhecido longa-metragem de Júlio Calasso realizado em 1970, obra ligada ao chamado “ciclo do cinema marginal”; a narração de Tristes trópicos (Arthur Omar, 1974), uso nada inocente da credibilidade de uma voz; e Das tripas coração, de Ana Carolina, filme realizado em 1982 pertencente à trilogia iniciada por Mar de rosas (1977) e completada dez anos depois por Sonho de valsa.

A partir da segunda metade dos anos 1990 até os dias atuais, é prolífica a sua participação no cinema brasileiro. Othon Bastos foi, entre outros diversos personagens, um padre em Menino Maluquinho, o filme (Helvécio Ratton, 1995); um industrial em crise em A grande noitada (Denoy de Oliveira, 1997); um caminhoneiro evangélico em Central do Brasil (Walter Salles, 1998); um pai reacionário em Bicho de sete cabeças (Laís Bodansky, 2000); o governador da colônia espiritual de Nosso lar (Wagner de Assis, 2010). Como narrador, sua voz continuou associada a temas de caráter político ou histórico (Barra 68 – Sem perder a ternura, 2001, e O engenho de Zé Lins, 2008, ambos de Wladimir Carvalho).

Há cerca de um ano, ou menos, na livraria de um cinema da Zona Sul carioca, notei a presença de um sujeito baixo, grisalho, que permanecia durante vários minutos com a cabeça baixa, os cotovelos apoiados no balcão de vidro, as palmas das mãos sobre o rosto, como se o ato de comprimir os olhos o ajudasse a fugir do ambiente que o rodeava. Como ele estava de costas, mal conseguia ver o seu rosto. Insisti em observá-lo nessa posição, e é claro que ele não me notou. Era Othon Bastos, o ator.

No Festival de Brasília de 2008, em que participei com o curta-metragem Que cavação é essa? (co-direção de Estevão Garcia) na competitiva 35 mm, fui ao debate sobre a restauração de São Bernardo e, na mesa, entre outros convidados, lá estava Othon Bastos. Durante a fala dos demais palestrantes, o mesmo gesto contrito e enigmático: os dedos pressionando os olhos, a boca desenhando uma expressão de quase desagrado, o olhar aparentemente ausente. Na hora em que teve de falar, um inesperado sorriso, olhos de um brilho contrabandeado de algum lugar do passado e a voz, potente, sonora, projetada para que o último assistente adormecido percebesse que alguém ali falava. O que foi dito era igualmente interessante (a forma sensível de Leon Hirzsman preparar os atores e dirigir, em tempos pré-Fátima Toledo), mas é impossível não se lembrar da sonoridade da voz, antes mesmo do sentido das palavras. Foi o meu segundo “encontro” com o ator.

A primeira vez que vi Othon Bastos deve ter sido por volta do início de 1986, em uma espécie de hotel-fazenda no interior do Estado do Rio, quando por ali se gravava uma sequência de “vaquejada” para a novela Roque Santeiro. Eu estava passando uma temporada de férias em uma cidadezinha bem próxima e fui com um amigo ver as gravações da novela, que reunia todo o elenco principal. São poucas as lembranças das cenas propriamente ditas, mas uma imagem ficou gravada para sempre: Maurício do Valle, Yoná Magalhães e Othon Bastos conversando durante um intervalo de gravação. Era como ver Antônio das Mortes, Rosa e Corisco amigavelmente batendo papo em torno de uma mesinha com guarda-sóis, entre goles de água mineral para abrandar o calor.

É que era ainda muito recente o impacto de ter assistido pela primeira vez, com 16 anos, em uma precária cópia 16mm, ao filme Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), em uma inesquecível sessão no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Lembro-me como se fosse ontem do que senti diante do grande close de Corisco, sujo de sangue, olhando para a câmera e vociferando: “Lampião bateu, chutou, cuspiu na cara dele!!!” Desde então, Othon Bastos ficou marcado para mim como um “ator do cinema brasileiro”. Isso significava, em uma palavra, frontalidade: um encarar a câmera/o espectador com olhos vítreos, uma determinada forma de escandir as palavras e de construir a frase, com uma cadência quase musical — melhor dizendo, teatral. Um ator de cinema brasileiro; um ator brasileiro de cinema.

Permito-me aqui, por meio deste epílogo — um depoimento pessoal —, expressar a minha relação com este ator, que não conheço pessoalmente, mas admiro de longa data.

1 BASTOS, Othon. Depoimento prestado a Simon Khoury. In: KHOURY, Simon. Atrás da máscara 2. Segredos pessoais e profissionais de grandes atores brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 76.
2 Desde então, Othon Bastos apareceu em inúmeros seriados, minisséries, programas especiais e novelas, não só na TV Globo como na Bandeirantes, Manchete e SBT.
3 Com Martha, Othon Bastos integrou o elenco do teatro Oficina, nas remontagens de Os pequenos burgueses, O rei da vela, Galileu Galilei e Na selva das cidades (1968-69).
4 Entre os curtas, destacam-se as séries “A condição brasileira”, produzida por Thomaz Farkas e dirigida por Geraldo Sarno, e “Brasiliana”, de Már io Kuperman, ambas realizadas nos anos 1970.